Seis anos depois do seu estouro em Curitiba, período em que alcançou o apogeu ao prender e condenar alguns dos principais executivos, parlamentares, lideranças partidárias e de massas do Brasil, a Lava-Jato enfrenta hoje um cerco político e jurídico inédito. Nesse fogo cruzado, há interesses eleitorais, corporativos, de carreira e de autopreservação.
A avaliação de juristas é de que a disputa de poder subiu a níveis preocupantes após as recentes declarações do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra a força-tarefa. Em debate pela internet com o grupo de advogados Prerrogativas, no dia 28 de julho, o chefe do Ministério Público Federal disse, se referindo a seus colegas procuradores regionais, que a equipe de Curitiba é uma "caixa de segredos". Ainda afirmou que é preciso "corrigir rumos" para que o "lavajatismo não perdure". Ele completou asseverando que isso "não significa redução do empenho no combate à corrupção".
O pano de fundo da disputa é o desejo da Procuradoria-Geral da República (PGR) em ter acesso ao acervo da força-tarefa da Curitiba, o que não ocorreu pelas vias administrativas. Aras foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) requerer o acesso, concedido inicialmente pelo presidente Dias Toffoli em regime de plantão no recesso do Judiciário, no início de julho, o que foi revogado nesta segunda-feira (3) pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato na Corte.
Neste contexto, está exposto um ambiente fratricida no MPF. São crescentes as contestações da categoria contra Aras, que bateu boca com procuradores que o criticaram pelas declarações contra a Lava-Jato em uma reunião virtual do Conselho Superior do MPF. Irritado, Aras abandonou o compromisso e deixou os pares falando sozinhos. O STF, com as decisões conflitantes e monocráticas de Toffoli e Fachin, voltou a se dividir.
No coração da disputa, o futuro e o legado da maior ação de combate à corrupção já lançada no Brasil - até agora, já foram condenados mais de 150 réus e R$ 4,9 bilhões foram recuperados para os cofres públicos. Também estão em jogo a carreira do procurador e coordenador da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol, que poderá ser removido das funções em julgamento que está por ocorrer no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sob acusação de quebra de decoro, e as possíveis pretensões políticas de Moro.
— As reações contra a Lava-Jato sempre foram previsíveis por ela ter sido, talvez, o mais bem sucedido movimento contra a corrupção. Ao mesmo tempo, surgiram desmandos, abusos, espetacularização e um inegável intuito contra o PT. O que faltava era um estopim. E ele veio. Quem abriu a primeira porta para uma investida feroz foi o próprio símbolo da Lava-Jato, Sergio Moro, ao entrar no governo Bolsonaro — avalia Gilson Dipp, jurista e ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Ele avalia que, além da transformação de Moro em ministro da Justiça e da Segurança Pública, também enfraqueceram a operação os vazamentos de mensagens de telefone trocadas entre os procuradores do MPF e o ex-juiz da 13ª Vara Criminal de Curitiba, fato que sugeriu a ideia de acordos prévios entre acusadores e magistrado, supostamente reduzindo as chances de plena defesa dos réus. "A gota d’água", diz Dipp, foi a nomeação de Aras para o cargo de PGR. Entre analistas, a nomeação de Aras por Bolsonaro mesmo ele não constando na lista tríplice do MPF e sem ter papel de liderança sobre seus pares afetou as relações internas no órgão e deu brechas para questionamentos de sua atuação em relação aos interesses da família presidencial.
— O que o governo Bolsonaro quer é neutralizar os organismos de controle. O primeiro foi o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira). Tiraram do Ministério da Justiça e passaram para o Banco Central. Não há BC no mundo com um organismo desses, mas a estratégia foi neutralizar. Depois, a briga sobre a chefia da Polícia Federal para neutralizar. E agora é o MPF. Em vez de defender os interesses da sociedade, Aras defende os interesses do presidente da República — diz o jurista Joaquim Falcão, fundador e professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Parte das supostas intervenções de Bolsonaro teria o objetivo de proteger familiares e aliados sob investigação, fato que se tornou alvo de apuração após denúncias públicas de Moro feitas ao deixar o cargo de ministro.
Vice-líder do governo na Câmara, Ubiratan Sanderson (PSL-RS) considera descabidos os ataques de Aras à Lava-Jato, mas avalia que os fatos estão circunscritos a uma querela interna no MPF. Ele refuta as avaliações de que o governo Bolsonaro tenha colocado em curso um plano de captura das autonomias dos órgãos de controle.
— Não são verdadeiras essas suposições.Não vejo motivo para Bolsonaro querer exercer suposta pressão sobre Aras, até porque o presidente não responde a nenhum processo junto à Lava-Jato ou qualquer outra notícia de crime sujeita ao PGR. Não acredito que Aras esteja agindo para prejudicar a Lava-Jato, algo inclusive impossível de ocorrer levando-se em conta a autonomia funcional dos diversos agentes envolvidos — analisou Sanderson, citando que, além do MPF, as investigações sempre contaram com participação da PF e da Justiça Federal.
Lava-Jato segue vitoriosa, embora sob ataque
Se Gilson Dipp, por um lado, aponta fragilização da Lava-Jato na arena pública, Joaquim Falcão acredita que, apesar das ofensivas, a operação permanece vitoriosa.
— A Lava-Jato não é mais uma operação, é uma atitude contra a corrupção de grande parte do Judiciário de primeira, segunda e terceira instância. Moro era juiz, foi ser ministro e, agora, é candidato a presidente da República. Queira ou não, as pessoas consideram ele candidato a presidente porque o principal problema do Brasil ainda hoje é a corrupção — analisa Falcão.
Para a parcela mais crítica à Lava-Jato, o fato de Moro ser, hoje, um virtual candidato à Presidência em 2022 é justamente o que evidencia o lado frágil da operação. Para os algozes, Moro não foi alçado naturalmente pelo destino ou pelos braços do povo às postulações eleitorais.
— A Lava-Jato cumpriu papel importante, foi relevante nos momentos em que enfrentou a corrupção. Posteriormente, demonstrou ter um projeto de poder que a levou a cometer excessos. Esse projeto de poder é eleger Moro presidente da República — diz Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um dos principais advogados criminalistas do país, com atuação na defesa de réus da Lava-Jato.
Ele avalia, assim como os demais entrevistados, que a celeuma sobre o compartilhamento de dados da força-tarefa de Curitiba com a PGR precisa ser decidida urgentemente pelo plenário do STF, e não em atos monocráticos, como os feitos por Toffoli e Fachin. Para Kakay, deve prevalecer a tese favorável à cedência das informações pelo viés da transparência.
— No momento em que a força-tarefa se posicionou como instituição própria, acima inclusive do MPF, ela se perdeu. E hoje agem de forma quase desesperada para que as pessoas não tenham acesso ao que eles fizeram. Por que é importante acessar esses documentos? Para saber por que optaram em fazer operações aqui e acolá — diz Kakay.
No contexto citado pelo criminalista, há receio e crença, dependendo do lado de quem analisa a questão, de que dados do acervo sejam usados para abrir processos disciplinares contra os procuradores. Investigações já estão em curso na Corregedoria do MPF e membros da força-tarefa da Lava-Jato de São Paulo também estariam entre os alvos.
Para Falcão, o compartilhamento poderá se dar, mas é parte de um processo de “livre convencimento dos procuradores”. A reportagem conversou, sob condição de anonimato, com dois ex-integrantes da força-tarefa da Lava-Jato, um deles da Polícia Federal e outro do MPF. Para ambos, atuantes nos tempos dourados da operação, as investidas de Aras têm o objetivo de desestruturar a Lava-Jato.
Para o procurador ouvido, a jurisprudência do STF “é uníssona no sentido de quem compartilha as provas é o juízo que a mandou para os locais. No caso da Lava-Jato, foi o próprio STF quem as mandou para Curitiba”. Sendo assim, diz, Aras “errou” ao pedir o repasse de dados internamente, sem a prévia autorização judicial. Ele também alerta que Aras pediu acesso amplo às informações, quando a jurisprudência indica a necessidade de apontamento de pessoas e fatos específicos para argumentar o compartilhamento.
A celeuma, avalia um delegado da PF, voltou a dividir os ministros “técnicos” e “políticos” do STF. Nos bastidores, são recordadas as declarações públicas de Bolsonaro gerando expectativas de que Aras poderia, no futuro, receber uma indicação para cadeira na Suprema Corte.
O cerco a Moro ainda é fechado pelo Congresso. Embora a classe política negue tê-lo como alvo, cresceram as defesas de propostas que tramitam na Câmara prevendo quarentena de oito anos para ex-juízes e ex-procuradores se candidatarem a cargos públicos. O objetivo seria evitar a “politização do Judiciário”. A discussão é sobre a retroatividade da proposta, caso aprovada, o que poderia afastar Moro da disputa de 2022.
Aras “sempre defendeu correção de rumos”, diz PGR
A Procuradoria-Geral da República (PGR), via assessoria de imprensa, manifestou que Augusto Aras “sempre defendeu a necessidade de ajustes e de correção de rumos nos trabalhos da força-tarefa da Lava-Jato”. Sem recuar do tom crítico, o recado foi de que o procurador-geral não apresentou “nenhuma mudança nem no discurso e nem nas atitudes em relação ao que já era afirmado desde antes de ser nomeado para o cargo.”
Sobre as declarações de Aras na live com a grupo Prerrogativas, a PGR divulgou nota oficial: “As informações genéricas prestadas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, na noite de terça-feira (28), em videoconferência do grupo de juristas Prerrogativas, são objeto de investigação que corre em sigilo na Corregedoria do Ministério Público Federal. O compartilhamento de informações da Lava-Jato com as instâncias superiores da instituição foi solicitado oficialmente e correu nos trâmites normais. As dificuldades encontradas pela administração superior para acessar informações que poderiam subsidiar investigações relevantes em andamento em outras unidades causou estranheza. A apuração dos fatos jogará luz e dará transparência aos procedimentos internos do Ministério Público Federal."