O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu esclarecer que a interpretação correta da Constituição e da lei que disciplina as Forças Armadas não permite intervenção do Exército sobre o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo nem dá aos militares a atribuição de poder moderador.
Em resposta à ação apresentada pelo PDT contra "eventual intervenção militar", o magistrado deu uma decisão liminar (provisória) para estabelecer que a prerrogativa do presidente da República de autorizar emprego das Forças Armadas não pode ser exercida contra os outros dois Poderes.
"A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República", ressaltou o ministro.
A decisão representa mais uma reação do STF a movimentos ligados ao presidente Jair Bolsonaro que pedem o fechamento da corte e do Congresso. Os apoiadores do chefe do Executivo alegam que o artigo 142 da Constituição prevê a intervenção militar.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, chegou a afirmar em uma entrevista que as Forças Armadas podem agir se "um poder invade a competência de outro". Segundo ele, quando isso ocorre, o poder que invadiu "não merece proteção desse garante da Constituição". Depois, Aras soltou uma nota em que afirmou ter sido mal interpretado.
O PDT, então, resolveu acionar o STF contra o dispositivo constitucional. Na ação, também contesta trecho da Lei 97/1997, que disciplina as Forças Armadas e repete o trecho da Constituição. Ambos os textos preveem que as Forças Armadas estão sob "autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
No despacho, Fux aponta qual é a interpretação correta para a Constituição e submete a decisão ao plenário da corte.
"O emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais poderes, na forma da Constituição e da lei", diz.
A decisão de Fux está alinhada com o presidente da corte, ministro Dias Toffoli, que criticou o argumento de bolsonaristas sobre o artigo 142 da Constituição.
"Não há lugar para quarto poder, para artigo 142 da Constituição. Forças Armadas sabem muito bem que o artigo 142 não lhes dá [classificação] de poder moderador. Tenho certeza de que as Forças Armadas são instituições de estado, que servem o povo brasileiro, não são instituições de governo", afirmou Toffoli no último dia 9.
Para conceder uma decisão liminar (provisória) antes de o processo ser analisado pelo plenário da corte, a lei define que precisam estar presentes duas hipóteses: o fumus boni juris, a chamada fumaça do bom direito, que indica se a ação alegada é plausível; e o Periculum in mora, ou seja, o perigo de dar uma decisão tardia sobre o caso.
Na decisão desta sexta, Fux alega a pressa é necessária porque as circunstâncias sociopolíticas subjacentes, sobretudo em tempos de crise revelam o perigo da demora veiculado. Fux também afirma que as Forças Armadas são compostas por órgãos de Estado, e não de governo, e estão indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político.
No começo de maio, ao participar de manifestação a favor do governo em frente ao Palácio do Planalto, Bolsonaro afirmou que os militares estão com o povo.
— Tenho certeza de uma coisa, nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, e pela liberdade — disse.
Segundo Fux, a interpretação do dispositivo constitucional que dispõe sobre as Forças Armadas imprescinde de uma leitura sistemática da Constituição.
Fux cita parecer da Câmara dos Deputados, que disse que a autoridade do Presidente da República é suprema em relação a todas as demais autoridades militares mas, naturalmente, não o é em relação à ordem constitucional. A liderança do chefe do Executivo sobre o Exército, ressalta o ministro, está relacionada apenas às balizas de hierarquia e de disciplina que envolvem a conduta militar.
"Por óbvio, não se sobrepõe à separação e à harmonia entre os Poderes, cujo funcionamento livre e independente fundamenta a democracia constitucional, no âmbito da qual nenhuma autoridade está acima das demais ou fora do alcance da Constituição", disse. Fux argumenta que a decisão tem caráter meramente explicativo e não reduz os poderes do presidente da República.
A independência entre os poderes prevista na Constituição deve ser preservada pelos mecanismos institucionais de freios e contra pesos e a expressão garantia dos poderes constitucionais do artigo 142 não comporta interpretação que admita o emprego das Forças Armadas para a defesa de um Poder contra o outro, resume Fux.
Inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderador: para a defesa de um poder sobre os demais a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes e seus mecanismos de realização, diz.
Caso a interpretação que bolsonaristas fazem das leis estivesse correto, Fux afirma que o Executivo seria um superpoder e imunizaria o presidente de responder por crimes de responsabilidade.
O que diz a Constituição sobre as Forças Armadas
- "Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
- Além disso, lei complementar de 1999 prevê, de modo compatível com o papel estabelecido na Constituição, a participação de militares em operações de paz, reforço à polícia de fronteira, cooperação com a Defesa Civil, entre outras ações.
Notas recentes do Ministério da Defesa:
- 20.abr
"As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal. O momento que se apresenta exige entendimento e esforço de todos os brasileiros. Nenhum país estava preparado para uma pandemia como a que estamos vivendo. Essa realidade requer adaptação das capacidades das Forças Armadas para combater um inimigo comum a todos: o coronavírus e suas consequências sociais. É isso o que estamos fazendo."
- 4.mai
"As Forças Armadas cumprem a sua missão constitucional. Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do país. A liberdade de expressão é requisito fundamental de um país democrático. No entanto, qualquer agressão a profissionais de imprensa é inaceitável. O Brasil precisa avançar. Enfrentamos uma pandemia de consequências sanitárias e sociais ainda imprevisíveis, que requer esforço e entendimento de todos. As Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade. Este é o nosso compromisso."