Após a repercussão de sua entrevista a Pedro Bial, na segunda-feira (1º), o procurador-geral da República, Augusto Aras, divulgou nota em que afirma que a Constituição não prevê intervenção militar, mas reforça que as Forças Armadas podem atuar em caso de ruptura.
"A Constituição não admite intervenção militar. Ademais, as instituições funcionam normalmente. Os Poderes são harmônicos e independentes entre si. Cada um deles há de praticar a autocontenção para que não se venha a contribuir para uma crise institucional. Conflitos entre Poderes constituídos, associados a uma calamidade pública e a outros fatores sociais concomitantes, podem culminar em desordem social. As Forças Armadas existem para a defesa da pátria, para a garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de quaisquer destes, para a garantia da lei e da ordem, a fim de preservar o regime da democracia participativa brasileira", diz a nota.
Em entrevista ao programa Conversa com Bial, Aras afirmou que um Poder perderia a garantia da Constituição caso invadisse a competência de outro, citando o artigo 142.
— Quando o artigo 142 estabelece que a s Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um Poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza — disse ele, na entrevista.
Críticas
A posição do procurador-geral da República na TV Globo gerou críticas dentro do Ministério Público Federal.
— Em minha análise, o conteúdo dessa nota contraria o que diz a Constituição, pois considera a falsa premissa de que a democracia é tutelada pelas armas — afirmou ao Estadão o subprocurador-geral da República Nicolao Dino.
— É uma visão equivocada do regime democrático e do sistema de freios e contrapesos, pois este funciona a partir do equilíbrio entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e sob a fiscalização do MP (art 127, CF). Num Estado democrático de direito, o crivo de qualquer possível conflito entre Poderes é o Judiciário, sendo o filtro último o STF — acrescentou Dino.
Para outro integrante da PGR, Aras claramente recuou em relação ao que disse na entrevista a Pedro Bial.
O presidente Jair Bolsonaro e parte de seus apoiadores passaram a citar o artigo 142 da Constituição para criar uma narrativa de que não seria ilegal um decreto de "intervenção militar" para conter o que consideram excessos do Supremo Tribunal Federal (STF). Juristas sem vínculos com o governo consultados pelo Estadão/Broadcast, no entanto, afirmam que essa interpretação é absurda, e consideram que, ao incentivar esse entendimento, o chefe do Palácio do Planalto flerta com crimes de responsabilidade.
O texto do artigo estabelece que as Forças Armadas, além de atuarem na defesa da Pátria, podem ser chamadas, por iniciativa dos Poderes da República, para garantia "da lei e da ordem". No entanto, na avaliação de especialistas, o texto constitucional é claro sobre as atribuições de Executivo, do Congresso e do STF, de modo que não cabe ao presidente a palavra final sobre o que é lei e ordem.
A referência ao artigo 142 foi feita por Bolsonaro em reunião ministerial no dia 22 de abril, que teve o vídeo divulgado no mês passado por ordem de Celso de Mello. No encontro com seus auxiliares, o mandatário citou o artigo e falou em "pedir as Forças Armadas que intervenham pra restabelecer a ordem no Brasil, naquele local sem problema nenhum".
Dias após o conteúdo da reunião vir a público, o presidente usou as redes sociais para compartilhar reflexões do jurista Ives Gandra Martins, que defende uma interpretação do artigo nos moldes da pretendida por Bolsonaro. No vídeo, Gandra afirma que o presidente "teria o direito de pedir as Forças Armadas" caso perdesse recursos à decisão que impediu a nomeação de Ramagem para o comando da PF.
Essa posição foi criticada por constitucionalistas.
— Tem que separar duas coisas. Uma é a questão da desobediência. A outra é que tipo de recursos o presidente tem além da desobediência. Quero achar que o que Aras tá dizendo enfoca mais na questão da desobediência. Outra coisa é dizer que além de desobedecer ele pode invocar as Forças Armadas. Ele tá fazendo cortina de fumaça. É totalmente possível separar as duas coisas, mas as duas estão erradas ao meu ver — disse Diego Werneck, professor de Direito do Insper.
— É uma interpretação limitada, equivocada e perigosa (a dos bolsonaristas). A Constituição, assim como qualquer outro diploma legal, não pode ser interpretada de maneira isolada, tem que ser interpretado de forma sistêmica. A manifestação do PGR não foi clara, e aí reside o problema. Dada a função do cargo que ocupa, das funções que exerce, é fundamental que seja claro e contundente quanto a qualquer hipótese de intervenção militar. Até porque se tem havido tensionamento, esse tensionamento tem sido provocado pelo Executivo. No momento em que um dos Poderes se acentua os demais precisam se acentuar para manter o equilíbrio — afirmou Jovacy Peter Filho, advogado e mestre em Direito Penal pela USP.
Por sua vez, Ludgero Liberato, sócio do escritório Chrome Jorge e Abelha Rodrigues, disse que "a leitura dele é completamente equivocada e tenta legitimar esse raciocínio que tem sido feito do artigo 142. Não tem hipótese de que um Poder perca suas garantias e se submeta ao Poder Moderador das Forças Armadas por extrapolar essas competências o constituinte imaginou situações nas quais os Poderes possam extrapolar suas atribuições e previu soluções pra isso. E nenhuma delas é a utilização das Forças Armadas".