Desencadeada pelo medo de perder direitos, a corrida por aposentadorias no serviço público adentra os portões das escolas da rede estadual e lança dúvidas sobre o início do próximo ano letivo. Um dos efeitos da debandada que está por vir — com auge previsto para janeiro e fevereiro —, será a saída de diretores e vice-diretores de suas funções, deixando instituições acéfalas no início de 2020.
Em Porto Alegre, o risco é real em estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, entre eles os colégios Baltazar de Oliveira Garcia, República Argentina, Carlos Fagundes de Mello e Othelo Rosa. Em muitos locais, o movimento é acompanhado por professores, supervisores escolares e agentes educacionais. Em escolas como a Aurélio Reis, todos os funcionários da área administrativa deixarão as atividades.
A onda de pedidos de afastamento teve início às vésperas da aprovação da reforma da Previdência, em outubro. Servidores de diferentes áreas se anteciparam à votação no Senado para não ter prejuízos com o fim da incorporação de vantagens aos proventos.
No caso do magistério, a categoria se sente duplamente atingida: primeiro, pela reforma federal e, em segundo lugar, pela perspectiva de revisão do plano de carreira dos professores, proposta pelo governo Eduardo Leite.
Para aplacar a crise, o governador enviou oito projetos à Assembleia no último dia 13. Entre elas, está o que revê a estrutura funcional e os benefícios dos docentes. Leite argumenta que, diante da penúria financeira, não há alternativa. Sustenta que haverá melhorias para quem ganha menos e pede compreensão aos mestres, mas a reação passa longe disso. Quem pode, está pedindo para sair.
Em dois dias, 279 aposentadorias
Os números ainda são contabilizados pela Secretaria de Planejamento, cujos dados vão até outubro e, por isso, não refletem a explosão de pedidos. Em novembro, o Diário Oficial dá uma pista do tamanho do problema: em apenas dois dias, 279 servidores da educação tiveram aposentadorias efetivadas, metade da média mensal.
Como o processamento dos pedidos tem levado de 90 a 120 dias em razão do volume represado, a tendência é de que a maior parte seja chancelada no despontar de 2020. Quando a solicitação completa 30 dias sem definição, o professor pode se licenciar, mas nem todos fazem isso para não deixar de receber gratificações. Já os diretores são obrigados a aguardar no cargo a publicação do desligamento.
Ainda que muitos desistam de sair, o governo terá um desafio colossal pela frente: repor as lacunas em tempo recorde e encontrar profissionais dispostos a assumir as escolas, em meio a descontentamento e insatisfação.
"Não vai sobrar ninguém para abrir o portão"
Desde que pediu a aposentadoria, em 17 de outubro, Nássara Scheck chora todos os dias. Aos 57 anos, acumula 35 anos e oito meses de magistério estadual. Poderia estar fora há uma década, mas planejava permanecer na ativa e, quem sabe, concorrer outra vez à direção do colégio que ajudou a reerguer.
Em 2007, quando assumiu a direção da Escola Estadual de Ensino Fundamental Aurélio Reis, em Porto Alegre, a professora de Educação Física recebeu o prédio com vidros quebrados e paredes pichadas. Herdou um cheque de R$ 0,40 e três meses de contas de telefone em atraso.
Dói sair assim, depois de ter levantado a escola. Ainda não caiu a ficha.
NÁSSARA SCHECK
Diretora da Aurélio Reis
Quatro anos depois, a instituição ganhou o título de escola-modelo e mereceu reportagem especial em ZH. Até hoje, é referência no bairro Jardim Floresta, zona norte da Capital. Tem 230 alunos, sendo 120 em tempo integral.
— Dói sair assim, depois de ter levantado a escola. Ainda não caiu a ficha — diz a diretora.
Nássara encaminhou a papelada antes da votação da reforma da Previdência por medo de perder a possibilidade de incorporar benefícios à aposentadoria. Cogitou voltar atrás assim que a Procuradoria-Geral do Estado emitiu parecer assegurando o direito adquirido, mas achou melhor não arriscar.
Até sair a publicação no Diário Oficial, diz que seguirá trabalhando e que ajudará quem a suceder, mas projeta dificuldades à frente:
— Ninguém quer assumir o meu lugar. Estão todos muito desmotivados.
Conhecida por organizar mutirões e angariar doações para a escola, Nássara não sairá sozinha. Junto dela, partirá toda a equipe administrativa, composta pela vice-diretora Regina da Silva, 68 anos, pela auxiliar de secretaria Ângela Maria Bregagnol, 64 anos, e pela secretária Mariza Albuquerque Senger, 60 anos.
— Com a saída da Nássara, não nos animamos a ficar — conta Ângela.
Mesmo sem tempo de serviço para se aposentar com o salário integral, as três colegas dizem que perderão mais se continuarem trabalhando – embora corram o risco de ter de contribuir para a Previdência na inatividade, caso o pacote de Eduardo Leite seja aprovado (hoje, inativos que ganham abaixo de R$ 5,8 mil não contribuem).
— A gente se sente desestimulada. Isso também pesou na decisão. Em 19 anos, nunca recebi uma promoção — afirma Regina.
Apesar do sentimento de decepção, o que mais preocupa o grupo é o futuro da Aurélio Reis e, principalmente, dos alunos.
— Não vai sobrar ninguém nem para abrir o portão. A parte administrativa cuida de tudo: desde comprar papel higiênico e providenciar consertos até atender os pais. Isso não vai se resolver da noite para o dia, por mais que o secretário da Educação tenha boa vontade. Vai ser um caos — lamenta Nássara.
"Por que só nós estamos pagando a conta?"
Localizada no bairro Jardim Leopoldina, na zona norte de Porto Alegre, a Escola Estadual de Ensino Médio Baltazar de Oliveira Garcia se assemelha, no tamanho, a um pequeno município do interior do Rio Grande do Sul: tem 1,8 mil alunos.
Desde 2008, a tarefa de gerir essa estrutura – com atividades em três turnos espalhadas por seis prédios (incluindo três brizoletas) – é da diretora Dóris Monteiro Grendene, 61 anos. Em breve, a responsabilidade não será mais dela, nem do vice-diretor-geral, Irineu Medeiros Maydana, 60 anos, seu braço direito. Por se sentirem desvalorizados, ambos decidiram pedir aposentadoria, apesar do desejo de seguirem em atividade.
— Concluímos que não havia saída. Somos apaixonados pelo que fazemos, mas chegou a hora de pensarmos em nós. O que dói é saber que a situação vai piorar para quem fica. Não sei se alguém vai querer nos substituir. Administrar uma escola desse tamanho não é simples e não há mais estímulo — afirma Dóris.
Além da dupla de gestores, o colégio perderá pelo menos quatro professoras responsáveis por oito turmas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental: Márcia Regina Conceição da Silva, 58 anos, Lucia Manganelli, 70 anos, Maria Sinara Silva de Oliveira, que prefere não revelar a idade, e Maria Teresinha Machado Barbosa, 55 anos. As docentes perderam as contas de quantas crianças ajudaram a formar. Optaram por sair para não ter perdas financeiras.
— Vamos sentir falta dos alunos, mas a gente já ganha pouco e parcelado. Não dá para perder mais direitos, que conquistamos com tanta luta. Se o Estado está em crise, por que só nós estamos pagando a conta? Não é justo — desabafa Márcia.
Juntas, ela e as colegas somam 135 anos de magistério e fazem a diferença na comunidade onde atuam. A escola fica em uma região periférica da cidade, marcada por vulnerabilidade social.
— Aqui, precisamos ser mais do que professoras. Somos mães, psicólogas, enfermeiras. Muitas vezes, lidamos com famílias desestruturadas. Nos preparamos para isso e não será fácil nos substituir — diz Lucia, especializada em psicopedagogia.
Se o Estado está em crise, por que só nós estamos pagando a conta? Não é justo
MÁRCIA CONCEIÇÃO DA SILVA
Professora
As amigas não desistiram de protestar contra as mudanças na carreira. Na última quarta-feira, foram até a Assembleia conversar com deputados. No dia seguinte, participaram de uma caminhada. Aderiram à greve – que é parcial no colégio – e pressionam pela rejeição ao projeto do governador Eduardo Leite.
— Ainda temos esperança de reverter a situação — explica Márcia.
Mesmo que a Secretaria da Educação se comprometa a fazer contratações temporárias para suprir todas as ausências (leia mais ao lado), os professores da Baltazar de Oliveira Garcia são céticos em relação ao que está por vir.
— Estou na Baltazar há 33 anos, a mesma idade do meu filho, e agora não sei o que será da escola. O futuro é incerto — adverte Maydana.
Secretário prevê 5 mil contratações temporárias para suprir debandada
Ciente das críticas dos professores e do impacto da corrida por aposentadorias nas escolas públicas, o secretário estadual da Educação, Faisal Karam, garante que a pasta está preparada para suprir as vagas até o início do novo ano letivo, em 19 de fevereiro de 2020. Segundo ele, já está autorizada a contratação temporária de 5.020 professores, o que pode ocorrer a qualquer momento.
Os professores não têm culpa da crise.
FAISAL KARAM
Secretário estadual da Educação
— Não começamos o processo seletivo ainda, porque estamos esperando para ver o número exato de docentes que estão saindo por disciplina para repor sem duplicidade. Estamos monitorando a situação de perto. Além disso, já temos toda a programação para o próximo ano letivo pronta. Faremos o possível para que 2020 seja melhor do que 2019 — promete Karam.
Sobre a vacância de diretores e vices, caso não apareçam interessados em concorrer às vagas, a secretaria tem a prerrogativa de indicar pessoas. Karam diz que essa avaliação será feita a partir de janeiro.
O secretário lamenta o risco de debandada, ressalta que os professores "não têm culpa da crise" e diz acreditar na possibilidade de uma saída consensual – o que, na prática, poderia levar os mestres a sustarem os pedidos de aposentadoria. Conforme Karam, o projeto de lei que revisa o plano de carreira do magistério ainda pode ser alterado na Assembleia, embora a margem para isso seja reduzida devido à situação das finanças.
Datado de 1974 e nunca atualizado, o documento estabelece a remuneração básica como referência para todas as etapas da vida docente, que se divide em seis classes, com seis níveis cada. Sempre que o valor inicial é reajustado, a alta repercute na totalidade da folha, inclusive em aposentadorias, vantagens e gratificações. Como a categoria é numerosa, a repercussão financeira é expressiva – e qualquer aumento torna-se inviável.
Foi essa situação que levou o Palácio Piratini a propor mudanças no texto. Se a proposição de Leite for aprovada como está, não haverá mais efeito-cascata automático. O governante poderá determinar – em projetos de lei específicos – como se darão futuros reajustes. Os percentuais poderão, inclusive, incidir tanto sobre subsídios quanto sobre as demais vantagens (que assumirão a forma de "parcela autônoma"). A diferença é que haverá maior autonomia e previsibilidade.
Para o Piratini, essa é a única chance de pagar o piso nacional do magistério como manda a lei.
— Hoje, se a gente der R$ 1 de aumento, o impacto é violento, e o professor merece ser valorizado. Temos de chegar a um plano que seja razoavelmente bom para o governo e para a categoria. O governo está aberto ao diálogo, assim como a secretaria. O projeto vai ser analisado na Assembleia e poderemos, quem sabe, adotar sugestões e rever alguns pontos — pondera o secretário.
Mudanças propostas, em cinco pontos
- Redução do número de níveis de progressão da carreira de seis para cinco.
- Gratificações e vantagens serão reformuladas (com cortes e reduções), deixarão de ser automáticas e não poderão ser incorporados à remuneração ou aposentadoria.
- Remuneração será na forma de subsídio (com valores fixos), com gratificações e vantagens separadas em "parcela autônoma".
- Quem ganha até dois salários mínimos (R$ 1.996) terá isenção no desconto do vale-refeição (de 6%).
- Quem ganha até três mínimos (R$ 2.994) receberá abono família de R$ 120 por filho (hoje é R$ 44,10).