Ao derrubar vetos do presidente Jair Bolsonaro na terça-feira (24), mostrando descompasso entre governo federal e Legislativo, o Congresso traçou novo modelo para a lei de abuso de autoridade. Agora, o texto apresenta um meio termo entre o que foi aprovado inicialmente pelos parlamentares e o que foi sancionado por Bolsonaro, no início do mês. Criminalistas e defensores dessa lei, que criticaram os vetos presidenciais na época, enxergam no ato do Congresso uma manobra de equilíbrio. Integrantes do Ministério Público, do Judiciário e das forças policiais avaliam o ato como um revés, que enfraquece o combate ao crime e intimida as autoridades.
Dois itens que foram incorporados à lei atingem diretamente a atuação de advogados. Um deles fixa pena de seis meses a dois anos de prisão para a autoridade que impedir, sem justa causa, encontro reservado do preso com seu defensor. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio de nota, comemorou o movimento dos congressistas, destacando que a derrubada dos vetos "é, sobretudo, uma conquista da sociedade".
Presidente da Associação dos Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (Acriergs), César Peres avalia que a derrubada de parte dos vetos melhora a lei, mas defende a manutenção da integralidade do texto enviado ao presidente como o cenário ideal. Peres lamenta que tenha ficado fora da lei o dispositivo que previa pena ao agente que usar algemas em pessoas que não oferecem resistência à prisão:
— Uma pessoa ser submetida ao uso de algemas quando não há necessidade me parece descabido.
Elias Mattar Assad, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), diz que a cidadania brasileira ganha com o gesto do Congresso, contando com "advogados invioláveis". Segundo Assad, o parlamento "disse não para as autoridades que querem estar acima das leis":
— Agora, temos uma tutela penal no manejo das prerrogativas profissionais. A autoridade vai pensar duas vezes antes de praticar crimes de violação de prerrogativa.
Edvandir Felix de Paiva, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), afirma que o novo formato da lei tende a intimidar a atuação das autoridades, criando um cenário onde os processos podem ser tumultuados. Paiva informou que a entidade vai questionar no Judiciário a constitucionalidade de alguns trechos do texto:
— Lei de abuso de autoridade é necessária. Agora, você não pode coibir abusos criando instrumentos que possam virar intimidações e vinganças futuras. Isso não podemos admitir.
Em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, na manhã de quarta-feira (25), o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Fernando Mendes, comentou o artigo que prevê punição para a autoridade que "decretar medida de privação da liberdade (prisão) em manifesta desconformidade com as hipóteses legais", um dos que foi incorporado ao texto:
— Isso certamente vai tirar uma estabilidade, é uma forma de se ameaçar a independência judicial. Por essa razão, estamos debatendo levar ao Supremo Tribunal Federal essa discussão.
Ouça a entrevista com o presidente da Ajufe na íntegra:
Vetos derrubados (itens ficam valendo na lei)
1. Responsável por investigação antecipar, inclusive por redes sociais, a atribuição de culpa antes de concluída a apuração e formalizada a denúncia.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
2. Decretar medidas de privação de liberdade em desconformidade com as hipóteses legais.
- Pena: um a quatro anos de prisão e multa.
3. Constranger o preso ou o detento, por meio de violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.
- Pena: um a quatro anos de prisão e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.
4. Violar o direito de advogados previsto em lei, como a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho e sigilo de comunicação.
- Pena: de três meses a um ano de prisão.
5. Deixar de se identificar, ou se identificar falsamente, no momento da prisão.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
6. Prosseguir com o interrogatório de pessoa que decidiu exercer o direito ao silêncio ou de pessoa que optou por ser acompanhada por advogado ou defensor público.
- Pena: um a quatro anos de prisão e multa.
7. Impedir, sem justa causa, encontro reservado do preso com seu advogado. Aplica-se a pena também a quem impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele se comunicar durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de audiência realizada por videoconferência.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
8. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente.
- Pena: um a quatro anos de prisão e multa.
9. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
10. Os crimes incluídos na lei são de ação penal pública incondicionada, ou seja, promovidos por denúncia do Ministério Público sem a necessidade de representação de alguém.
Vetos mantidos (ficam fora da lei)
1. Proibição de exercício do trabalho policial no município onde o crime tiver sido praticado ou no qual residir ou trabalhar a vítima.
- Pena: adotava restrições de direito em vez de prisão.
2. Configurar como crime a captura, prisão ou busca e apreensão de alguém que não esteja em flagrante ou sem ordem escrita da Justiça.
- Pena: um a quatro anos de prisão a multa.
3. Prever como crime fotografar, filmar, permitir que fotografem ou filmem ou divulgar imagem de preso, investigado, indiciado ou vítima sem o seu consentimento ou autorizada mediante constrangimento para expor a pessoa a "vexame ou "execração pública".
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
4. Classificar como crime submeter o preso ao uso de algemas ou qualquer objeto que restrinja o movimento dos seus membros quando não houver resistência à prisão ou ameaça de fuga.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
5. Tornar crime o mandado de busca e apreensão realizado "de forma ostensiva desproporcional" ou extrapolando os limites impostos pela autorização judicial para expor o investigado a "vexame".
- Pena: um a quatro anos de prisão e multa.
6. Punição para a autoridade que induzisse ou instigasse uma pessoa a praticar um crime a fim de prendê-la em flagrante.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
7. Transformar em crime o ato de omitir informações sobre fatos relevantes e não sigilosos para prejudicar interesse do investigado.
- Pena: seis meses a dois anos de prisão e multa.
8. Transformar em crime o fato de deixar de corrigir um erro no processo que tivesse conhecimento.
- Pena: três a seis meses de prisão e multas.
9. Punição para a autoridade que dificultasse ou proibisse, sem justa causa, a reunião de pessoas.
- Pena: três meses a um ano de prisão e multa.