Ao assumir o Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro fez dois discursos sob medida, com tons e objetivos distintos.
O primeiro foi lido no Congresso, diante dos antigos pares. Em 10 minutos, o sucessor de Michel Temer reafirmou o compromisso com a agenda econômica liberal, destacou a necessidade de um pacto entre os poderes e, ciente dos desafios que tem pela frente, pediu o apoio de deputados e senadores.
– Estou casando com vocês – brincou o chefe de Estado.
Na segunda manifestação, na Praça dos Três Poderes, Bolsonaro dirigiu-se à massa de apoiadores que viajou até Brasília apenas para vê-lo. Repetiu mantras da campanha, frases de impacto e, para delírio do público, prometeu livrar o brasileiro do “socialismo e do politicamente correto”.
A seguir, confira trechos dos dois discursos e o que está por trás de cada um.
Me coloco diante de toda a nação neste dia como um dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto.
Ao fazer essa afirmação, avalia o cientista político Daniel de Mendonça, da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Bolsonaro foi fiel ao discurso que marcou a campanha eleitoral – e aos seus seguidores. Para Fernando Schüler, do Insper, a frase foi dita com um objetivo claro de “reverberar nas mídias sociais”:
– O objetivo era provocar impacto, engajamento, algo muito caro a Bolsonaro. É evidente que o Brasil não é um país socialista, mas tem uma simbologia aí que é a seguinte: “Derrotamos a esquerda”. É uma retórica de mobilização.
Conseguimos montar um governo sem conchavos ou acertos políticos. Formamos um time de ministros técnicos e capazes para transformar nosso Brasil.
Ao que tudo indica, a montagem do ministério seguiu uma lógica diferente da que vinha sendo adotada até então.
– Não é um ministério de base partidária, nem para formar uma coalizão. É um ministério feito na base da convicção – analisa Fernando Schüler.
A questão, agora, é como será o desdobramento disso.
– A tendência é aumentar a pressão do Congresso. Não basta Bolsonaro dizer que a partir de agora tudo mudou, simplesmente porque ele quer. Ele tem ministros sem experiência na política, muitos militares e poucos cargos para distribuir entre os partidos. Ele também não pode continuar se relacionando apenas com as bancadas (temáticas). Pode ter dificuldades no futuro – projeta o cientista político Paulo Peres, da UFRGS.
Nossa bandeira jamais será vermelha.
A frase foi dita ao final do discurso no parlatório, com uma flâmula brasileira em mãos, e levou o público bolsonarista ao delírio. Vale lembrar que a vitória de Bolsonaro se explica, em grande parte, pelo avanço do antipetismo no Brasil. De certa forma, Bolsonaro é resultado da ojeriza ao PT, partido associado à cor vermelha.
– Foi um discurso feito sob medida para o eleitorado, por alguém que construiu a carreira em cima de frases de efeito – opina Daniel de Mendonça.
Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem valores e tradições, destroem famílias. Podemos, todos juntos, restabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil.
Bolsonaro acredita, na avaliação de Fernando Schüler, que a crise brasileira é produto de uma crise de valores. Ao reforçar esse discurso e conclamar as famílias para “restabelecer padrões éticos”, o presidente aposta em uma linguagem de grande alcance popular.
– Essa leitura moral é clássica na retórica populista. Aí você tem a luta do bem contra o mal, mais ou menos assim: nós, que representamos a retomada dos valores, podemos refundar a política. Em boa medida, a esquerda fez isso durante 30 anos no Brasil, só que isso gerou uma reação, que obviamente também é ideológica – pondera Schüler.
Pretendo partilhar o poder, de forma progressiva, responsável e consciente, de Brasília para o Brasil; do Poder Central para Estados e municípios.
A frase “mais Brasil, menos Brasília” foi um dos motes da campanha de Bolsonaro país afora. Ao afirmar que pretende distribuir o poder “de Brasília para o Brasil”, citando Estados e municípios, ele procurou traduzir esse anseio. Não ficou claro, contudo, o que de fato planeja.
– A frase é vaga. Pode ser uma referência a um novo pacto federativo. Obviamente, há grande pressão dos governadores que estão assumindo, porque a situação é catastrófica – avalia Paulo Peres, para quem Bolsonaro continua agindo "como se ainda estivesse em campanha".
Vamos valorizar o Parlamento. Convoco cada um dos congressistas para me ajudarem na missão de restaurar e reerguer nossa pátria, libertando-a do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica.
Enquanto Bolsonaro assinava o termo de posse, um deputado aliado brincou: “É casamento?” O presidente respondeu: “Estou casando com vocês.”
O recado reforçou o que ficaria claro no discurso proferido no Congresso. Se durante a escolha dos nomes do primeiro escalão Bolsonaro priorizou militares, técnicos e indicações das bancadas temáticas, desagradando líderes partidários, agora ele sabe que precisa do apoio do Parlamento para colocar em prática o plano econômico de Paulo Guedes.
– Bolsonaro fez um gesto claro aos antigos colegas, porque tem uma agenda que precisará de muitas alterações na legislação – resume Paulo Peres.
Na economia, traremos a marca da confiança, do interesse nacional, do livre mercado e da eficiência. Confiança no compromisso de que o governo não gastará mais do que arrecada e na garantia de que as regras, os contratos e as propriedades serão respeitados.
Esse trecho fez parte da fala de Bolsonaro no Congresso, mais protocolar e formal do que o segundo discurso. Foi nesse momento que Bolsonaro reafirmou seu compromisso com as ideias do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele sabe que levar as reformas adiante será vital para o sucesso de sua gestão.
– As melhores expectativas que se pode ter em relação ao governo são na agenda econômica. Quando o presidente diz que o governo não vai gastar mais do que arrecada, está reforçando o bom senso da dona de casa – opina Fernando Schüler.
Uma de minhas prioridades é proteger e revigorar a democracia brasileira, trabalhando arduamente para que deixe de ser promessa formal e distante e passe a ser um componente substancial da vida política brasileira, com o respeito ao Estado Democrático.
Ao destacar a intenção de “proteger e revigorar a democracia brasileira”, Bolsonaro procurou rebater críticas que marcaram a campanha e desconfianças que persistem.
– A imprensa em peso, especialmente a internacional, chamou atenção para o discurso antidemocrático que ele sempre teve. E não me parece que mudou tanto assim. Basta ver a forma como os jornalistas foram tratados na posse – diz Paulo Peres.
Para Daniel de Mendonça, não há risco real à democracia, mas Bolsonaro sabe que paira sobre ele “a nuvem da dúvida”, em razão de suas posições políticas.
– Ele bateu nessa tecla para tentar dissipar essa nuvem – resume.