Aos 20 anos, Guilherme Boulos deixou a casa dos pais, um casal de médicos professores da Universidade de São Paulo (USP), para ir morar na ocupação Carlos Lamarca, em Osasco (SP), onde 2 mil sem-teto acampavam em um terreno de 600 mil metros quadrados. Começava ali a transformação do militante estudantil em porta-voz da luta pela moradia no país, uma trajetória que hoje, 15 anos depois, o guindou à pré-candidatura à Presidência da República pelo PSOL.
Coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), organização que dobrou de tamanho nos últimos quatro anos, Boulos é uma das principais lideranças da esquerda no país.
Seu programa de governo defende a implementação de mecanismos de democracia direta, como plebiscitos e referendos, pesados investimentos públicos em infraestrutura social e uma reforma tributária progressiva, com taxação concentrada na renda dos mais ricos e desoneração do consumo.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a GaúchaZH.
O senhor é filósofo, psicanalista, filho de médicos e tem origem na classe média alta. Saiu de casa para morar em uma ocupação e hoje se tornou um dos principais líderes da esquerda. Como se deu essa passagem?
Comecei meu ativismo com 15 anos, no movimento estudantil. Me formei em escola pública no Ensino Médio e fui me aproximando da luta dos movimentos populares e sociais. Em nenhum momento passei necessidade na minha infância e adolescência, mas uma coisa que não podemos perder é a capacidade de se indignar. A partir dessa aproximação com os sem-teto, fui morar numa ocupação e há 16 anos atuo no movimento, dedico minha vida a isso. Me formei em filosofia, depois em psicanálise, hoje sou professor numa escola de especialização e compatibilizo isso com uma militância social para que todos possam ter as oportunidades que tive. O Brasil tem um abismo social tremendo, uma desigualdade expressa em cada esquina. É preciso ter capacidade de sentir a dor do outro e assumir suas causas.
O senhor não tinha atuação partidária e agora é o mais jovem candidato à Presidência. Por que disputar já o cargo mais alto do país?
Isso não se escolhe. A crise na qual o país foi afundado, econômica, política, ética, fez com que tivéssemos de assumir o desafio de apresentar um novo projeto, levar novas vozes para dentro da política. Essa candidatura surgiu de um debate nos movimentos sociais e se configurou numa aliança. É algo que veio de baixo. Não enxergo a política como uma escada, uma carreira que você vai subindo. Se experiência política-parlamentar fosse credencial para um bom governo, (Michel) Temer seria o melhor presidente da história. Há 50 anos ele faz a mesma velha política das negociatas, e é o pior presidente que temos. Construí minha trajetória política de outra forma, a partir das lutas sociais, da resistência e do contato com o povo.
Como o recente incêndio no prédio ocupado em São Paulo reflete as mazelas enfrentadas por quem luta por moradia no país?
A tragédia que ocorreu em São Paulo reflete o descaso histórico do poder público com a questão da moradia. Antes de condenar as ocupações, é preciso buscar saber porque as pessoas ocupam. O que leva milhares de famílias pelo país afora a participarem de ocupações de prédios ou terrenos ociosos não é a vontade das pessoas, mas a falta de alternativa. É o fato de muita gente ter, ao final do mês, de escolher entre pagar o aluguel ou botar comida na mesa. Uma política pública de habitação que desapropriasse e requalificasse os imóveis ociosos como aquele e destinasse para moradia popular de forma organizada teria impedido tragédias como essa.
Como o senhor vê as declarações de algumas famílias que moravam no prédio incendiado de que pagavam R$ 400 de aluguel ao movimento que organizava a ocupação?
Primeiro é preciso ressaltar que essa ocupação não é organizada pelo MTST. Por isso não tenho como responder pelos procedimentos que eram realizados lá. Condenamos de maneira clara qualquer tipo de cobrança às famílias. Isso tem que ser apurado. É preciso separar o joio do trigo. Oportunista existem em todas as partes e seguramente vai ser mais fácil encontrar uma quantidade mais fácil de oportunista por metro quadrado em Brasília, no Congresso Nacional, do que nos movimentos por moradia. Se há qualquer tipo de irregularidade, precisa ser apurada. Não compactuamos com isso, mas isso não pode ser utilizado de maneira indistinta para atacar e criminalizar os movimentos sociais de luta por moradia no Brasil.
Sua filiação e a própria candidatura não foram unânimes no PSOL, em função de sua proximidade com Lula. A partir da prisão do ex-presidente, o senhor interrompeu a campanha para apoiá-lo. Não teme que esse apoio irrestrito confunda os eleitores, principalmente parte da esquerda desencantada com o PT?
Só não tem divergências os partidos que não tem vida. Mas esse debate se concluiu em 10 de março, quando 70% dos delegados aprovaram a chapa comigo e a Sônia Guajajara. O partido está unido em torno dessa candidatura. Em relação a Lula, nossas diferenças são claras, inclusive as críticas que temos aos governos do PT. Mas também temos clareza da nossa responsabilidade histórica num momento tão grave. O Brasil vive sua maior crise democrática desde o fim da ditadura, com uma escalada de violência política, generais insinuando ameaças de intervenção via Twitter e a prisão política do Lula, sem qualquer prova. Não vamos nos isentar de defender a democracia. Estar nas trincheiras pela liberdade do Lula não diminui nossa candidatura e não creio que confunda o eleitor.
O seu surgimento e sua relação com o MTST lembra muito as origens embrionárias de PT, Lula e MST. Como transformar o PSOL e o MTST numa nova esquerda, capaz de chegar ao poder e governar?
O PSOL tem tido um crescimento importante. Há uma chapa parlamentar muito competitiva e candidatos aos governos dos Estados. Acreditamos que a aliança com a sociedade é o caminho para apresentar um projeto de esquerda que, ao mesmo tempo, seja crítico, ousado, enfrente privilégios, sem medo de colocar o medo nas feridas, aprofunde a democracia e também seja viável. É um processo novo, de baixo para cima.
Princípios como superávit primário, ajuste fiscal e controle inflacionário terão importância na sua gestão?
Superávit primário e ajuste fiscal são uma coisa, controle inflacionário, outra. Governo que pensa no bem-estar do povo tem de controlar inflação. Mas não se faz isso aumentando juros e esganando a economia. O governo Temer reduziu a inflação destruindo a economia. A nossa política econômica tem como centro o enfrentamento das desigualdades e um programa de investimentos públicos. O ajuste fiscal, além de jogar a conta da crise nas costas dos trabalhadores pobres e de classe média, gera novos desajustes. Estão fazendo ajuste fiscal há três anos e o déficit só cresce, porque quando você reduz investimento público, desaquece a economia, gera desemprego, reduz a renda e a arrecadação. Cria-se um novo problema fiscal. O caminho para lidar com crises é ampliar investimento público em infraestrutura social, saúde, educação, moradia.
Qual reforma é indispensável?
A reforma tributária. Isso se faz também pensando no financiamento do Estado. Hoje esse financiamento é de uma injustiça tamanha. Só quem paga imposto no Brasil é pobre e classe média. Os super-ricos não pagam. É preciso uma reforma tributária progressiva, em que rico comece a pagar imposto no Brasil, com taxação de grandes fortunas, imposto sobre lucros e dividendos. Essa reforma, para nós, é chave. Quem tem mais, paga mais, e quem tem menos, paga menos. Pode até aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda, mas é preciso criar novas faixas. Não é razoável que um professor universitário ou um médico paguem a mesma alíquota que o Neymar ou que o CEO de uma grande corporação. Isso gera uma arrecadação importante ao mesmo tempo que faz justiça e enfrenta a desigualdade.
Essa polarização entre Jair Bolsonaro (PSL) e Lula (PT) no início da campanha fez surgir várias candidaturas de centro: Geraldo Alckmin (PSDB), Rodrigo Maia (DEM), Henrique Meirelles (PMDB), todos tentando se apresentar como alternativa não-radical. Como o senhor pretende se apresentar?
Essa ideia do centro é um fantasma. Todo mundo quer ser o centro, mas quem é o centro hoje no Brasil? O país está esgarçado, dividido. Nós temos lado. Dizer que vai governar para todos é na verdade mentir para alguém. Não há como governar para as maiorias sem enfrentar os privilégios. Temos um sistema político falido que torna o país ingovernável. Virou um balcão de negócios que leva à descrença das pessoas na política. Vamos aproximar o poder das pessoas com plebiscitos, referendos, conselhos. No dia 1º de janeiro, pretendo chamar um plebiscito que possa revogar medidas do governo Temer, como reforma trabalhista, entrega do pré-sal, teto de gastos e reforma do Ensino Médio. Não vamos tergiversar nas nossas propostas.
O discurso do golpe estará em seu palanque? Ele encontra eco suficiente para levá-lo ao segundo turno?
Houve um golpe parlamentar no Brasil. Dilma foi destituída sem qualquer crime de responsabilidade num processo conduzido pelo (ex-deputado) Eduardo Cunha e que colocou Temer no poder, mentindo para a sociedade que iria tirar o país do buraco. Dois anos depois, olha onde estamos. Não vamos deixar de falar sobre isso. Nossa campanha não será coordenada por marqueteiro, orientada para dizer coisas que podem ser interessantes aos ouvidos de certos setores da sociedade. A população está cansada disso. Parte da desesperança com a política é por causa dessa maquiagem, de mentiras no processo eleitoral. Não vamos abrir mão das nossas bandeiras, vamos apresentar nossas ideais e ter a maturidade de discutir isso com a sociedade. Sem extremismo, mas quebrando tabus e preconceitos.