Enquanto a campanha entre os candidatos à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) se intensifica no segundo turno em meio a temáticas ideológicas e comportamentais e acusações de corrupção nos dois lados do ringue, ao vencedor da disputa aguardam vários desafios na área econômica.
Reformulação do teto de gastos, recursos para manter o Auxílio Brasil em R$ 600, controle da inflação, redução do juro e expansão da economia são alguns dos tópicos analisados pelas equipes de Lula e Bolsonaro, assim como especialistas na área. A questão fiscal é vista como o principal problema, e tem na elevação dos gastos públicos de maneira não sustentada o seu detonador armado para o próximo ano.
Sem previsão orçamentária, a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 por beneficiário deverá, no mínimo, dobrar o déficit primário (resultado negativo do saldo entre receitas e despesas do governo, exceto pagamentos de juros da dívida pública) de R$ 64 bilhões já anunciado para o primeiro ano do próximo mandato. Assim, a partir de janeiro, outros itens da pauta econômica – relegados ao segundo plano no debate até agora – virão à tona de imediato.
Exemplos disso são os incentivos ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a continuidade do aperto dos juros no combate à inflação, os mecanismos de reversão da perda de arrecadação federal e dos Estados, novas fontes de receitas para arcar com a elevação de gastos e reforma tributária. Essas e outras pautas, alertam os especialistas, demandarão respostas rápidas, ainda não verbalizadas durante o período eleitoral.
— Falar de bomba fiscal para o próximo ano não é terrorismo, pelo contrário, é uma visão prudente do atual momento fiscal — resume Mauro Rochlin, doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Social
Rochlin pondera que as ações voltadas às áreas sociais são fundamentais por envolverem a base da pirâmide de renda. Por isso, antevê dificuldade para que algum dos candidatos não mantenha os atuais valores do Auxílio Brasil, o que demandaria mais R$ 50 bilhões nos gastos públicos. Outros R$ 10 bilhões seriam acrescidos, caso a proposta de Bolsonaro de conceder 13º salário para as mulheres do programa saia do papel. Já em vitória de Lula, os valores para contemplar mais R$ 150 por crianças até seis anos ainda não foram estimados.
— Entendo que, qualquer que seja o novo governo, ainda que o desenho de políticas públicas voltadas para a área social seja uma necessidade, é temerário falar em aumento de gastos sem enquadrar isso dentro de alguma regra — avalia.
Falar de bomba fiscal para o próximo ano não é terrorismo, pelo contrário, é uma visão prudente do atual momento fiscal
MAURO ROCHLIN
Doutor em Economia pela UFRJ e professor de Economia da FGV
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre) e doutor em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), Samuel Pessôa recorda que, antes de o Auxílio Brasil ser turbinado, os investimentos no combate à pobreza representavam 0,5% do PIB, e, agora, alcançam 1,5%. Mesmo assim, "há evidências claras de baixa efetividade" na aplicação.
— Seria melhor manter em 1% do PIB, dobrar, e caminhar na direção da eficácia do gasto. Não faz sentido duplicar um gasto de combate à pobreza em proporção do PIB e a sensação de pobreza e insegurança alimentar aumentar. Tem algum problema aí — diz.
Nesse caso, o mecanismo de controle vigente seria o chamado teto de gastos. A medida foi criada pelo Congresso Nacional em 2016, por meio de proposta de emenda à Constituição (PEC). Alterou o regime fiscal e limitou a alta do gasto público, por 20 anos (até 2036), ao crescimento do ano anterior, corrigido pela inflação.
De um lado, Bolsonaro descumpriu a norma, de maneira assumida por seu ministro da Economia, Paulo Guedes – para "socorrer a população mais frágil e garantir empregos" na pandemia, em 2020 e 2021, e "contornar as perdas" ocasionadas pela guerra entre Rússia e Ucrânia, em 2022. Se reeleito, deixaria um terceiro furo, em 2023. Conforme a Instituição Fiscal Independente, órgão vinculado ao Senado, em agosto deste ano, a atual gestão havia extrapolado os valores executados fora do orçamento em R$ 213 bilhões.
Regras
Por outro, Lula descarta manter o teto de gastos, sem detalhar o que viria em substituição. Em seus oito anos de governo (2003-2011), o regime fiscal foi balizado pelo superávit primário (saldo positivo entre receitas e despesas do governo, com exceção dos pagamentos de juros da dívida). O modelo permaneceu à risca sob as rédeas do ex-presidente, mas foi descumprido pela sucessora e correligionária Dilma Rousseff (PT).
Economista e professor da Universidade Federal do RS (UFRGS), Marcelo Portugal explica que, ao contrário da política monetária em que o consenso global converge para o sistema de metas de inflação, usado por diversos países, entre eles o Brasil, cada nação desenvolve seus próprios mecanismos fiscais.
O principal problema é fiscal. Cada candidato quer oferecer mais dinheiro. O problema é que esse mesmo dinheiro sairá do bolso do próprio eleitor, que será obrigado a financiar essa farra no ano que vem
MARCELO PORTUGAL
Economista e professor da UFRGS
Os EUA, por exemplo, diz o professor, centralizam as ações no tamanho da evolução da dívida pública. Já os ingleses, acrescenta, focam as atenções sobre o que denominam de orçamento ao longo do ciclo (produção de déficit quando a economia está mal e superávit quando está bem) para gerar equilibro fiscal em prazos ampliados de cinco ou seis anos. No Brasil, foram várias as regras não cumpridas, salienta:
— O principal problema é fiscal. Cada candidato quer oferecer mais dinheiro. O problema é que esse mesmo dinheiro sairá do bolso do próprio eleitor, que será obrigado a financiar essa farra no ano que vem — contrapõe.
Ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central e ex-economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander, Alexandre Schwartsman lembra que o teto fiscal é cláusula da Constituição. Para que deixe de existir, é necessária a aprovação por três quintos do Congresso (49 dos 81 senadores e 308 dos 513 deputados).
— Se vai mudar essa regra, por que não se mudaria a outra? Você pode colocar a regra que for, mas na hora que a onça for beber água, ela vai espirrar e gastar o quanto quiser, independentemente de quem seja. A gente não faz as coisas de acordo com as leis no Brasil, a gente faz as leis de acordo com as coisas — critica Schwartsman.
Desafios da economia à espera do eleito ao Planalto
Manutenção do Auxílio Brasil de R$ 600
- O que diz Lula: vai manter e acrescentar R$ 150 por criança de até seis anos no núcleo familiar, sem especificar as fontes dos recursos
- O que diz Bolsonaro: vai manter e acrescentar o 13º salário para as mulheres no programa, com recursos da taxação de lucros e dividendos em 15% para retiradas acima de R$ 500 mil mensais
- O que alertam os economistas: a manutenção do auxílio em R$ 600 obrigará o vencedor da corrida eleitoral a romper com o teto de gastos. Isso acontece porque a origem dos recursos, calculados em R$ 50 bilhões ao ano, não está prevista no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) para 2023, o que elevaria o atual déficit primário (resultado negativo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros) de R$ 64 bilhões para algo próximo ou superior a R$ 120 bilhões, e de antemão se constitui no maior desafio econômico do eleito
Teto de gastos
- O que diz Lula: pretende alterar a regra (que limita o crescimento das despesas públicas à inflação registrada no ano anterior), com indícios de uma substituição para o regime de superávit primário (resultado positivo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros), vigente em seus dois mandatos (2003/2011)
- O que diz Bolsonaro: a pandemia e as consequências da guerra entre a Rússia e a Ucrânia já levaram ao rompimento da regra, mas dentro da "responsabilidade fiscal"
- O que alertam os economistas: a expansão fiscal na magnitude da observada, seja de maneira concreta até o momento ou nas propostas que envolvem elevação de gastos, demandará uma definição rápida e clara do novo eleito sobre instrumentos de controle capazes de evitar elevação de carga tributária e até mesmo as novas pressões inflacionárias e efeitos sobre o crescimento econômico do país
Combate à inflação e projeção de crescimento
- O que diz Lula: assume compromisso de coordenar a política econômica para combater a inflação de alimentos e combustíveis, assegurando crescimento econômico, competitividade e emprego
- O que diz Bolsonaro: exalta o combate à inflação já realizado com a desoneração de tributos estaduais e federais sobre combustíveis e o crescimento e empregos em níveis pré-pandemia
- O que alertam os economistas: apesar de surpresas positivas com a retomada da atividade econômica (crescimento do Produto Interno Bruto, o PIB) e geração de empregos, nos horizontes alongados se percebe que se a trajetória é ruim para déficit e dívida pública. O canal de transmissão da política fiscal para a inflação é o gasto elevado do governo, fora dos valores que estão na proposta do orçamento de 2023. Além dos efeitos diretos sobre os preços, há consequência indireta na reticência dos investidores e potenciais compradores de títulos públicos por conta de uma maior aversão ao risco. Ainda poderá ser necessário conviver com patamares mais elevados de inflação e crescimento restrito
Reforma tributária e correção da tabela do IR
- O que diz Lula: propõe reforma solidária, justa e sustentável, que simplifique tributos, em que os pobres paguem menos e os ricos paguem mais, com indícios de atualização parcial da tabela do IR
- O que diz Bolsonaro: propôs reforma que tramita no Congresso com correção de 31% na tabela do IR, isentando trabalhadores celetistas que recebessem até R$ 2,5 mil mensais
- O que alertam os economistas: uma reforma tributária ampla deveria ser consolidada em 2023 com alterações nos chamados impostos indiretos (que incidem sobre o consumo de produtos ou serviços). O objetivo é evitar as transferências da política fiscal para a economia, a exemplo do que contemplam as PECs 45/2019 (que unifica IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins em imposto único, o IBS) e 110/2019 (que substitui IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, salário-educação, ICMS e ISS pelo Imposto sobre o Valor Agregado, o IVA). Percebem pouco espaço para isso e, sobretudo, para a atualização da tabela do IR, cuja defasagem entre 1996 e 2022 é de 147,37%, enquanto não houver maior controle fiscal
Fontes: planos de governo, declarações em debates, entrevistas e propaganda eleitoral dos candidatos
Risco de aumento de tributos
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/IBbre), Samuel Pessôa avalia que não há saída que sustente o teto de gastos intacto. Diante do fato, antecipa que a eventual guinada em direção à produção de superávit primário como norte da política fiscal só seria obtida com o aumento da carga tributária.
— Se você flexibilizar o teto, que é o que ocorrerá, só pode falar em superávit primário aumentando impostos. É legítimo, não está escrito em nenhum lugar que a carga máxima tem de ficar em determinado patamar. A política monetária está apertada, os juros estão altos e precisará haver alguma contenção fiscal, ainda que venha com a carga tributária. É uma questão de natureza política — comenta.
Para evitar a hipótese de elevações de tributos, o economista Mauro Rochlin cita a revisão de concessão de renúncias fiscais. A pauta, que já frequenta a agenda do ministro Paulo Guedes desde as eleições de 2018, é reduzir os regimes tributários especiais, hoje próximos de 4% do PIB, para algo perto de 2%, como prevê a PEC 109/2021, em tramitação no Congresso.
Com isso, avalia que seria possível redirecionar entre R$ 50 bilhões e R$ 70 bilhões. Da mesma forma, a taxação de lucros e dividendos e de grandes fortunas passeia no imaginário de ambas as políticas econômicas dentro de uma reforma tributária ampla. Mas isso, na avaliação dos economistas, se torna cada vez mais difícil de alcançar.
Pressões
Alterar impostos indiretos (que incidem sobre o consumo, como preveem as PECs 45 e 110) para simplificar e reduzir custo de transação da inflação para a economia e mexer no Imposto de Renda (IR) aumentando a tributação sobre os regimes tributários especiais (desonerações) despontam como alternativas. As opções aventadas incluiriam ainda a taxação do lucro presumido (apurado com base na receita já efetivada) e a tributação de empresas que operam no lucro real (calculado a partir dos dados de despesas, receitas, custos e gastos).
— Mas a questão é como encontrar esses valores se foram concedidos R$ 20 bilhões para o orçamento secreto, quando se ampliou o Auxílio Brasil, se deu gorjeta para taxistas e caminhoneiros e se reduziu drasticamente a cobrança de impostos federais com relação a combustíveis, energia elétrica e telecomunicações — declara Rochlin.
Em síntese, Pessôa argumenta que a geração dessas novas fontes de receita, antes pensadas para contemplar uma reforma tributária com potencial de atualizar parte da defasagem da tabela do IR das pessoas físicas (147,37% desde 1996), agora, caso sejam criadas, terão de cobrir a elevação dos gastos públicos. E o pior, avalia, é que boa parte deles foi gerado pelos compromissos de campanha e o viés eleitoral.
— Não consigo notar diferenças entre o projeto econômico de um ou outro porque a campanha não lidou com isso. Ao longo do governo Bolsonaro foram aplicadas políticas de enxugamento de gastos, mas foi exagerada, porque diversos serviços públicos pioraram, note-se a precariedade do combate aos incêndios ilegais na floresta amazônica. Imagino que Lula melhore a qualidade dessas áreas por uma contenção muito forte no gasto nos servidores públicos. A questão é saber se Lula vai ser o do primeiro ou o do segundo mandato. São muito diferentes entre si. Só olhando as primeiras medidas para saber com que roupa o Lula ou Bolsonaro se apresentarão — afirma Pessôa.
Dilema entre crescer e combater a inflação
A partir de 2023, os efeitos para as políticas de combate à inflação e incentivo ao crescimento devem emergir, avaliam economistas. A desaceleração do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que, em agosto, passou a acumular alta de 8,73% em 12 meses, aponta Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (BC), é puxada pela redução de impostos sobre o preço dos combustíveis, energia elétrica e telecomunicações.
Quando se avalia a chamada inflação subjacente (núcleos), afirma, é possível perceber mais consistência, ainda que a trajetória de recuo permaneça em razão de um ciclo de alta na taxa básica de juro (em 13,75%, atualmente), empregado pelo BC a partir de março de 2021.
Ainda assim, Schwartsman aponta que o pano de fundo é outro: de longo prazo. Segundo ele, em horizontes mais ampliados do que 2023 e 2024, a trajetória ruim de déficit e dívida trará dificuldades adicionais e fará com que o brasileiro tenha que conviver com inflação mais alta por período mais largo. Nesse contexto, o dilema do presidente eleito, antecipa, passará por combater a inflação ou sustentar taxas mais agressivas de crescimento do PIB.
— Se a gente acredita, como eu acredito, que a inflação vai ceder no ano que vem, sabemos que não vai cair por mágica, mas como resultado de taxa de juros mais elevada, que desacelera a atividade econômica. Portanto, será difícil o país crescer no ano que vem. Se crescer, significa que a inflação não será mais baixa e vai permanecer conosco. É o dilema que o eleito terá que resolver. Se o presidente não quiser enfrentar uma desaceleração econômica, terá um problema inflacionário, e sabe-se que quanto mais se adia o combate à inflação, mais custoso ele é. Não tem escapatória, em 2025 e 2026, há esse risco porque a política monetária não deverá sustentar isso sozinha. Não é para os próximos dois anos — alerta.
Samuel Pessôa lembra que o próprio BC já declarou que passou a considerar o intervalo entre o segundo trimestre do ano que vem e o primeiro semestre de 2024 para efeito de suas decisões de política monetária. Significa, diz o economista, que alterou o ano calendário em um trimestre porque espera pela reversão de uma série de medidas tributárias que afetam o IPCA de forma "artificial".
Pessôa acrescenta que, no ano seguinte, as commodities agrícolas tendem a exibir menores patamares de cotação internacional. Na esteira da constatação, comenta, devem extrair parte das pressões sobre os preços. O problema é que essa reversão pode até ajudar no combate à inflação, mas, em paralelo, diz, também reduz a previsão de crescimento e piora a política fiscal.