Quinto maior município gaúcho, com 283 mil habitantes, Santa Maria apresenta carências estruturais na saúde, na mobilidade urbana e na economia. Os três setores foram apontados por entidades e instituições do município, consultadas por GZH, como os problemas mais urgentes que exigirão dedicação especial do próximo prefeito.
Na segunda reportagem da série sobre os desafios dos futuros gestores dos municípios com possibilidade de segundo turno, GZH deparou com ruas esburacadas, de trânsito confuso e congestionado, com uma rede pública de saúde insuficiente para atender à demanda da população e uma geração de renda dependente do elevado número de servidores públicos, principal força motriz de comércio e serviços. A pandemia escancarou ainda mais as deficiências ao forçar uma redução de 25% no orçamento da prefeitura para 2021, caindo dos R$ 810 milhões previstos em 2020 para R$ 610 milhões ano que vem. No dia 15 de novembro, seis candidatos disputarão o voto dos 204.282 eleitores.
Cabe a eles formular soluções para quem aguarda atendimento médico, perde horas preciosas trancado no trânsito e tenta desenvolver a economia local.
Para definir os três principais desafios para o futuro governante de Santa Maria, GZH consultou Paulo Burmann, reitor da Universidade Federal de Santa Maria; Luiz Fernando Pacheco, presidente da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Santa Maria, e Rodrigo Santos, presidente da União de Associações Comunitárias.
Mobilidade urbana
A vida parada no trânsito
O ônibus estacionou no Paradão da Rio Branco, no centro de Santa Maria, com Flávio Itamar Ferreira já devidamente posicionado sobre o elevador para cadeirantes. As portas se abriram, mas o equipamento travou. Subia e descia, sem jamais alcançar o nível da calçada, impedindo o desembarque.
O motorista se somou aos esforços do cobrador nas tentativas frustradas de fazer funcionar o mecanismo, mas não havia jeito. Os minutos passavam e os demais passageiros já demonstravam impaciência com o atraso quando finalmente Flávio conseguiu descer do ônibus. O incômodo registrado no início da tarde escaldante de terça-feira, 13 de outubro, já é rotina para o aposentado de 67 anos, cuja perna direita teve de ser amputada por causa de uma trombose.
– Pego ônibus todos os dias, três a quatro vezes por dia, e o elevador quase sempre está emperrado. A maioria não funciona – desabafa Ferreira, que chega a esperar duas horas pela chegada de um coletivo para se deslocar de casa, no Jardim Berleze, até o Centro.
Relatos assim se repetem nas paradas da cidade, sobretudo reclamando de atrasos, lotação excessiva e desconforto nos veículos sem ar condicionado.
Com 100 mil passageiros diários e operando sem licitação, o sistema é controlado por seis empresas desde os anos 1990. Uma concorrência ocorreria em julho, mas foi suspensa em razão da pandemia. Os contratos foram prorrogados até 25 de janeiro, tornando-se um tema urgente para a próxima gestão.
Repleta de lombas espalhadas por vias estreitas e em geral esburacadas, Santa Maria tem uma mobilidade urbana truncada. Aos 214 ônibus, somam-se 1,78 veículo de passeio por domicílio – uma frota que cresceu 66% de 2007 a 2016. Nos últimos meses, a prefeitura começou uma série de obras viárias e recuperação do asfalto.
– A obra é importante, mas era para ter acabado em agosto e até hoje segue e afasta os clientes, que não passam tanto por aqui por causa dos bloqueios – comenta o empresário Jean Ruviaro, cuja estética na Rua Riachuelo perdeu 20% do movimento nos últimos meses.
Desenvolvimento econômico
A esperança de recuperação no pós-pandemia
Após mais uma noite de trabalho, o empresário Diego Braga, 42 anos, foi fechar o caixa do The Park, um dos pubs mais badalados de Santa Maria nos últimos anos. Era julho de 2020 e a conta demorou parcos segundos: R$ 23 de faturamento. Poucos meses antes, havia 70 pessoas esperando na fila do lado de fora e outras 240 se divertindo nos 300 metros quadrados do bar.
A pandemia foi crucial para o sumiço dos clientes, mas meses antes a crise econômica já manifestava seus primeiros sintomas.
– Em setembro de 2019, tivemos uma queda de 30% no movimento. É um pouco sazonal, mas já serviu como alerta. Quando veio a pandemia, arrasou com tudo. Dia após dia, não entrava ninguém – recorda Braga, o chef Pepi, como é conhecido na cidade.
Sem alternativa, Pepi e o sócio, Fernando Corrêa, fecharam as portas, deixando para trás R$ 1,2 milhão em investimento. Não foram os únicos. Imóveis comerciais à venda ou para alugar formam uma paisagem constante na cidade. Estimativa de entidades empresariais apontam para o fechamento de 500 empresas após as restrições da pandemia.
O fim do The Park significou também 25 dos 2.724 empregos que Santa Maria perdeu durante a pandemia. De fevereiro a agosto, o município fechou 559 vagas a mais do que Pelotas, embora tenha 59 mil habitantes a menos. Para recuperar a geração de empregos e o ambiente de negócios, a principal aposta é na vocação militar.
Com 9,3 mil homens e 21 quartéis, Santa Maria abriga o segundo maior contingente do país, responsável pela circulação anual de R$ 670 milhões entre salários, suprimentos e serviços – cifra superior ao orçamento da prefeitura para 2021. A expectativa agora é por sediar uma escola de sargentos do Exército, o que atrairia mais 2,1 mil militares e um investimento inicial de R$ 1 bilhão, além da injeção anual de R$ 250 milhões na economia local.
– Santa Maria é uma cidade de funcionários públicos, vive em torno dos quartéis e da universidade federal. É preciso atrair indústrias, diversificar a atividade econômica – sugere o chef Pepi, agora pilotando a parrilla do Dos Cocina, um restaurante da família.
Saúde
À espera por atendimento na rede pública
O aposentado Rubilar dos Santos Costa, 62 anos, estava se preparando para o desjejum quando caiu no banheiro de casa, na manhã de uma sexta-feira, 14 de agosto de 2020. Levado para o pronto-atendimento (PA) do bairro Patronato, foi diagnosticado com um AVC hemorrágico, mas não havia leito de UTI neurológica em Santa Maria. Nas quase 20 horas em que aguardou transferência para Rio Grande, a 300 quilômetros de distância, sofreu três paradas cardíacas e não resistiu.
A morte de Costa abalou ainda mais a crença de sua família no sistema de saúde público. A sobrinha, Carla Costa Soares, 40 anos, só foi descobrir que estava grávida aos cinco meses de gestação, ao se submeter a uma endoscopia, mesmo tendo passado por uma ultrassonografia três meses antes. Na noite em que o tio agonizava no PA do Patronato, Carla gravou um vídeo chorando em frente ao local. A mensagem viralizou nas redes sociais, levando a prefeitura e o governo do Estado a divulgarem nota oficial para justificar a escassez de leitos de UTI no município.
– É inadmissível deixar alguém sofrer três paradas respiratórias enquanto se planeja uma transferência. O estado dele era grave, jamais poderia ter ficado ali, num posto de saúde, por tanto tempo – reclama Carla.
Além das deficiências estruturais na rede pública, Santa Maria enfrentou um surto de toxoplasmose com 900 casos em 2018, e de dengue, com 287 casos até abril deste ano. O Hospital Regional, um empreendimento de R$ 70 milhões concebido em 2003, só entrou em operação em meio à pandemia, após receber R$ 36 milhões do governo federal. Mesmo assim, os 50 leitos inaugurais são insuficientes à demanda local.
– Faltam vagas nos hospitais, faltam médicos e faltam exames. Nossa família é exemplo dessa situação – lamenta-se Marilene Costa.
Mãe de Carla e irmã de Costa, a aposentada de 63 anos rompeu o tendão do braço direito em 2012 e foi encaminhada para cirurgia. Quando a operação foi marcada, sete anos depois, não foi possível realizar o procedimento, porque o tendão havia “cicatrizado aberto”.