Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Finanças Públicas pela renomada universidade de Harvard (EUA), o pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo Gustavo Fernandes afirma que a saída para a penúria das cidades brasileiras tem pelo menos dois caminhos. Um mais curto, que exigirá apoio financeiro da União para atravessar 2021, e outro mais longo que conduz a uma completa reformulação administrativa.
O especialista, ligado ao Departamento de Gestão Pública da FGV, sustenta que a solução estrutural para prefeituras de menor porte está na criação de consórcios e no compartilhamento de recursos a exemplo do que já fazem localidades europeias. Veja a seguir um resumo da entrevista concedida por telefone a GZH.
Os prefeitos se queixam de que têm mais obrigações do que dinheiro para dar conta. Esse é o problema?
Os serviços de saúde, educação, zeladoria, que é o cuidado com a cidade, estão no comando dos governos locais. A Constituição de 1988 trouxe uma mudança radical na história brasileira que foi a criação do SUS e a universalização da educação, o que fez explodir o número de servidores públicos municipais. Nos últimos 20 anos, saímos de algo próximo a um milhão para 6 milhões, 7 milhões de servidores públicos municipais. É uma expansão muito grande, mas a estrutura federativa brasileira e a nossa tradição política não dão recursos para os municípios. De fato, eles têm muitas atribuições essenciais, sem uma retaguarda de arrecadação correspondente.
Por que isso ocorre e qual a solução?
Os prefeitos não têm força política para tributar. O grosso da tributação é ISS (Imposto sobre Serviços) e IPTU, e muitos municípios estão com plantas de valores de imóveis super desatualizadas. Temos perto de 300 cidades no Brasil que nem cobram IPTU. Além disso, a máquina de tributação do ISS é muito ineficiente. Como resultado, as prefeituras trabalham com um terço de arrecadação própria e dois terços de repasse do governo federal via principalmente Fundo de Participação dos Municípios. Se olharmos países desenvolvidos, no mínimo dois terços da arrecadação é própria. Nossas prefeituras não gostam de tributar seus munícipes.
Para evitar o desgaste político?
Exato. Por ter tradição clientelista. Pela tradição, o prefeito é um sujeito que pega dinheiro de Brasília, do governo estadual, e aloca no município. Ele não é um sujeito que tributa e devolve, que busca recursos. A gente não rompeu ainda com essa lógica, então prefeitos têm enorme dificuldade de aumentar a tributação local. Os prefeitos não se esforçam para fazer isso, e com qualidade — que é pegar pessoas com mais condições de contribuir e criar uma estrutura progressiva de impostos. Imóveis mais caros pagam mais, enquanto se isenta os de outras áreas. Falta desenvolver a máquina arrecadatória. Esse é um primeiro elemento.
Quais os demais?
Não faz sentido que o menor município gaúcho tenha a mesma estrutura do maior
Um deles é algo que também atinge o Rio Grande do Sul. Nós temos a mesma estrutura para os maiores e os menores municípios. Temos uma estrutura administrativa muito pouco flexível. Na Espanha, por exemplo, foi feita uma reforma. Lá você tem cidades muito pequenas, mas você não consegue acabar com elas porque são muito antigas, têm 800, 900 anos. O que eles fizeram? Se você não tem um número mínimo de habitantes, não pode ter uma procuradoria municipal própria. Você é estimulado a se consorciar com municípios próximos para ter uma procuradoria comum. A mesma coisa com outros órgãos, como controladoria. Poderíamos economizar muitos recursos se os pequenos municípios gaúchos se unissem em consórcios e tivessem, por exemplo, a mesma procuradoria. Por que não fazer isso com as Câmaras de Vereadores e unificar assessorias jurídicas, por exemplo? Hoje cada vereador tem dois, três assessores, muitos ociosos, enquanto há uma grande pressão nas áreas de saúde e educação.
Por que isso não sai do papel no Brasil?
Falta ambição aos governos federal e estaduais de estimular que as prefeituras façam isso. Uma das formas mais eficientes de redução de gastos seria compartilhar ativos existentes (entre os municípios), desde uma máquina até um advogado. Academicamente já sabemos que isso funciona, mas ainda não chegamos a esse ponto de maturidade do debate político. Os municípios devem unir esforços para reduzir custos. É preciso quebrar essa lógica clientelista e patrimonialista pela qual o prefeito não consegue oferecer mensagem de confiança em que diz “vou tributar, mas vocês vão ter serviços públicos”.
Uma reforma federativa resolveria isso?
Precisamos aprofundar a lógica de consórcios e cooperação
Deve haver uma revisão do pacto federativo em que a gente permita estruturas de gestão mais inteligentes para os governos locais. Não faz sentido que o menor município gaúcho tenha, constitucionalmente, a mesma estrutura do maior. Sentido nenhum. Precisamos aprofundar a lógica de consórcios e de cooperação entre governos locais.
Dada a dificuldade desse tipo de mudança, e o fato de os municípios precisarem de saídas urgentes para enfrentar a crise atual, o que pode ser feito já?
Essa crise tem impacto econômico, destrói balanços e pequenas empresas, destrói a confiança do consumidor e as contas de governos subnacionais (Estados e prefeituras). Isso ocorre no Brasil e nos EUA, onde está ocorrendo a mesma discussão. No caso brasileiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu regras tão rígidas que os governos subnacionais praticamente não têm acesso a mercado de crédito. É preciso que o governo federal organize política de apoio aos governos locais, porque temos serviço público acumulado: quando você posterga uma cirurgia eletiva, a doença avançou. Temos um represamento e teremos uma explosão de gastos. Será preciso apoio federal para os municípios atravessarem 2021. O ideal seria uma política de auxílio que mesclasse estímulo para o aumento da eficiência.
O senhor diz condicionar apoio financeiro a municípios que concordarem em fazer reformas?
Sim, para prefeituras que se comprometam em aumentar eficiência, criar consórcios, mas infelizmente temos um governo federal frágil do ponto de vista administrativo. Tem muito discurso de liberalismo, mas do ponto de vista técnico é frágil. As reformas propostas, como fusão de municípios, chegam à beira da ingenuidade técnica. Nenhum país do mundo fez algo tão simplório. Gestão é algo complexo e precisaríamos de pacote de apoio que combinasse ajuda financeira, para as prefeituras não falirem, com contrapartida para aprofundar reformas de gestão. Espanha, Portugal, vários países fizeram isso após a crise de 2008 com reformas administrativas profundas. Temos de lembrar que, ao contrário de outros países como Estados Unidos, Alemanha ou Espanha, o Brasil é um dos poucos que têm um capítulo constitucional que define uma forma inflexível de governo local sem importar o tamanho do município. Não tem como dar certo.