Fenômeno cercado por complexidades e nuances, a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) na eleição à Presidência da República do Brasil é produto de fatores nacionais e internacionais. Perpassa pautas econômicas, políticas, morais, culturais e religiosas. O triunfo do populista de extrema-direita, movimento ascendente no mundo, finda a polarização entre PT e PSDB, reinante no país desde o início dos anos 1990, e abre uma nova e insondável era, cujos resultados mais imediatos indicam a radicalização de opiniões e o risco da violência política.
— A eleição dele remete a um conjunto de fatores, não há explicação simples, mas a mais geral delas nos diz que a política é feita de grandes ciclos. Essa eleição é o encerramento do grande ciclo da polarização entre PT e PSDB, duas vertentes da socialdemocracia, nascidas no processo de redemocratização. A debacle é também do PSDB. O PT ainda teve uma sobrevida muito por conta do lulismo — analisa o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler.
Ele avalia que, apesar de a vitória de Bolsonaro causar euforia e medo pelo mundo, deve ser encarada com certa "normalidade".
— As grandes democracias vivem de ciclos. Os partidos tendem a envelhecer, é difícil se reciclar. E a sociedade, em determinados momentos, quer mudar, ela produz novos tipos de demanda. É difícil um partido representar a continuidade e a renovação simultaneamente — examina Schüler.
Aspectos mais objetivos que ajudam a explicar a vitória de Bolsonaro, parlamentar que não era levado a sério até menos de meia década atrás, podem ser buscados a partir dos protestos de junho de 2013. Naquele ano, manifestações ruidosas e, por vezes, violentas, foram lançadas às ruas do país inicialmente por grupos de esquerda, extrema-esquerda e anarquistas. A pauta inicial era o passe-livre no transporte coletivo, mas, aos poucos, a demanda foi cedendo espaço para insatisfações difusas e generalizadas, desde o combate à corrupção até melhorias em saúde e educação, dentro do slogan "contra tudo e contra todos".
As massas foram incorporadas por grupos de outros pensamentos políticos, incluindo conservadores, e as organizações de esquerda perderam o controle das manifestações. Popularidades de governos foram rapidamente corroídas, inclusive a da então bem avaliada gestão de Dilma Rousseff. E, por fim, nasceram naquelas marchas o sentimento antissistema e de repúdio às instituições tradicionais, traduzidos nos gritos "sem partido" durante as passeatas. A violência de alguns daqueles atos, com queimas de ônibus, depredação do mobiliário urbano e invasão e saque de estabelecimentos, vicejou o desejo de parte da população por ordem e repressão.
— Uma parte do movimento que desembocou na extrema-direita eclode em 2013. As manifestações eram legítimas, mas aquilo destampou ressentimento, fúria e indignação, soltou lava de vulcão para todos os lados. Com o tempo, o movimento de direita foi crescendo muito. O MBL (Movimento Brasil Livre) e outras articulações começaram em 2013 — diz o jornalista Eugênio Bucci, autor do livro A forma bruta dos protestos, citando uma das organizações, o MBL, que viriam a ter decisiva relevância no processo de impeachment de Dilma, em 2016.
A origem do movimento
As marchas daquele ano também significaram a disrupção do modelo de comunicação política que, agora, é decisivo para a eleição de Bolsonaro: a interlocução digital, a militância virtual e a convocação de atos pela internet.
— Eu diria que o momento atual só pode ser compreendido à luz deste movimento que começa em 2013. Mesmo que os atores tenham mudado, permaneceu a lógica de que o cidadão comum assume o protagonismo da política, com migração do debate para as redes sociais, em manifestações mais diretas, o que as tornam também mais violentas, sem os filtros tradicionais de mediação que eram feitos pelos partidos, pelas instituições e pela mídia — discorre Schüler.
Se as passeatas de 2013 foram convocadas e comentadas sobretudo pelo Facebook, o tempo e as adequações tecnológicas fizeram essas articulações digitais ganharem mais poder no WhatsApp, aplicativo fechado e não monitorável. Uma potente máquina de comunicação — e de distribuição de informações falsas — estava criada.
— Do ponto de vista conceitual, essa estrutura e o discurso moralizante da corrupção, do antipetismo, baseado nos costumes, começou a ser elaborado em 2013, além da metodologia de comunicação sofisticada. Não foi o Bolsonaro que inventou essa usina de fake news. O que importa é a metodologia. E ele levou tudo a outro nível. A greve dos caminhoneiros botou o país de joelhos, vimos que era uma estrutura preparada para parar o Brasil. E essa estrutura estava alinhada ao Bolsonaro — diz Gunter Axt, historiador e colaborador do núcleo Diversitas da USP, recordando o movimento grevista dos caminhoneiros, misturado a um locaute de empresários do setor dos transportes, que ocorreu em maio de 2018.
As esquerdas do país, sobretudo o PT, que lidera o bloco, sofreram novos reveses decisivos em 2014. Apesar de Dilma ter sido reeleita naquele ano, a eleição marcou o início da onda conservadora, com a numerosa composição de bancadas deste espectro político no Congresso. O próprio Bolsonaro foi alavancado pelo fenômeno, findando o pleito reeleito deputado federal com mais de 464 mil votos, maior número entre todos os candidatos do Rio à Câmara. Em entrevista a ZH em outubro de 2014, ao comentar o prestígio colhidos nas urnas, emitiu uma sentença que o tempo haveria de confirmar e, a população, referendar. "Pode escrever: serei opção para 2018 à Presidência".
Já durante a eleição, o PT e partidos aliados começaram a sofrer abalos com o aprofundamento das investigações da operação Lava-Jato, que aos poucos desvelava o pantanoso esquema de corrupção e desvio de recursos em empreendimentos da Petrobras, a maioria empresa pública brasileira. O avanço das apurações foi fatal e petistas de alto escalão acabaram na cadeia, como o ex-tesoureiro João Vaccari Neto, os ex-ministros Antonio Palocci e José Dirceu, além do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos políticos mais carismáticos da história da América Latina.
Moralismo, ética e segurança como pilares
Desmoralizado no campo da ética, o PT ainda assistiu uma crise econômica abater o país logo no início do segundo mandato de Dilma, com 13 milhões de desempregados e queda nos investimentos. A receita estava pronta com a junção deste quadro ao discurso antissistema e moralista, a crise ética do governo e o repúdio aos partidos tradicionais. Criou-se um ambiente de revolta e, de quebra, propício para o surgimento de um "salvador da pátria" ou "outsider", como Bolsonaro sempre se apresentou por ter sido um deputado federal periférico e irrelevante por quase três décadas, sem trânsito entre o establishment político nacional.
Entre os erros da esquerda que beneficiaram o capitão da reserva, analistas apontam a pauta de gênero e do politicamente correto, no contexto da chamada "guerra cultural" em curso no mundo. A avaliação é de que, após a disputa entre capitalismo e socialismo perder relevância com a queda do Muro de Berlim, a esquerda passou a procurar novas bandeiras. A da distribuição de renda através do aprofundamento e criação de novos programas sociais foi o carro-chefe do sucesso dos dois governos de Lula. Depois, em parte acompanhando movimento que aconteceu nos Estados Unidos com o partido Democrata, sobressaíram as questões de gênero, o feminismo e o politicamente correto. Nenhum especialista ouvido pela reportagem afirmou que são políticas desnecessárias. Asseguraram, sim, que excessos podem ter gerado reações extremas do conservadorismo.
Para ilustrar o caso, o historiador Axt recorda de episódio emblemático de 2015 na Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), quando jovens feministas, alegando protestar contra a violência sofrida por mulheres, circularam nuas pelo campus e urinaram pelas dependências. Para lacrar de vez, uma das estudantes decidiu se masturbar em uma escadaria.
— Há setores da sociedade que entram em estado de choque ao ver essas coisas. Se o campo liberal e progressista não consegue dar uma resposta a esse tipo de exagero, o que as pessoas começam a achar: faliu o campo progressista, ele não tem mais a resposta. E aí quem tem a resposta? O campo histriônico da extrema-direita — aponta Axt.
Ao apostar "excessivamente" nas questões identitárias, a esquerda se afastou do trabalhador médio que estava desempregado, sem interesse e supostamente sem capacidade de compreender a temática e suas terminologias. Não por acaso, setores progressistas contemporâneos, a exemplo do que ocorre em Porto Alegre, desfrutam de trânsito mais fluente nas universidades do que nas vilas.
— Dominar os conceitos de esquerda, hoje, virou erudição — diagnostica Bruno Lima Rocha, professor de Relações Internacionais e Jornalismo da Unisinos.
Ao se isolar de setores simples da sociedade, com linguagem complexa e bandeiras distantes das primeiras necessidades das camadas mais populares, parte da esquerda passou a ser vista como elite estatal. O establishment.
— A arrogância que se enxerga na esquerda brasileira é a mesma que começou a se identificar na elite liberal (democratas) nos Estados Unidos — diz Axt.
O ponto de vista é compartilhado pelo cientista político norte-americano Mark Lilla, para o qual o foco e os eventuais abusos de pautas identitárias foram relevantes para a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton na última eleição presidencial. A confirmação de que Lula não poderia disputar a eleição deste ano no Brasil, fruto da sua condenação por corrupção em segunda instância, também favoreceu Bolsonaro.
— A grande liderança carismática que dialogou com as massas nas últimas décadas foi o Lula. Sem ele, quem tem carisma? O Bolsonaro. É impressionante a quantidade de eleitores do Lula que estão votando nele — diz Axt.
Não bastasse a crise econômica, a forja de um radical antipetismo e a crise das instituições, também o descontrole na segurança pública ajudou a pavimentar a caminhada do presidente eleito. Sem aprofundar propostas, buscou jargões populares e soluções simplistas que foram ao encontro de expectativas.
— A segurança é muito complexa e exige respostas sofisticadas, mas ele construiu discurso simplificador que foi compreendido pelas pessoas. Botar arma na mão de todo mundo, deixar o policial atirar para depois perguntar, reduzir a maioridade penal. Isso tudo vem do populismo, do carisma e do tipo de interlocução dele com o homem comum. Ele percebe o senso comum e dá materialidade e amplitude a isso com o discurso. As redes sociais fazem o trabalho de juntar essas pessoas, que antes estavam dispersas — avalia Axt.
Também é fundamental observar a religião na tentativa de compreender o novo momento inaugurado com a eleição de Bolsonaro. Não por acaso, seu lema de campanha foi "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", ainda que a retórica dele sempre tenha contemplado temas como armas de fogo, morte de infratores, "varredura" contra opositores e tortura, temas contrários ao pregado pelo cristianismo, assegura o frei Luiz Carlos Susin, doutor em teologia e professor da PUCRS.
— Tivemos um uso irracional da religião, sem o seu caráter de sabedoria e racionalidade. E há uma consequência e preocupação muito grande: o sagrado pode justificar violência. Linchamentos podem ser vistos como necessidade para a purificação. A história mostra isso. As vítimas costumam ser as minorias — declara Susin, que vê o Brasil "à beira de um abismo".
O frei faz análise que ajuda a compreender o fato de setores menos abastados da sociedade terem votado significativamente em Bolsonaro, adotando uma nova mentalidade conservadora.
— Ultimamente houve crescimento da visão fundamentalista religiosa no Brasil. Quando a gente vai examinar, observando pesquisas e estatísticas do IBGE, percebemos que esse fundamentalismo está muito ligado à resistência da dignidade popular que busca se apoiar em elementos religiosos simples. Ficamos espantados com a maneira simplista que autoridades religiosas usaram para se manifestar nesta campanha. Faz parte de uma comunicação mais direta, fácil e menos pensante — atesta Susin, atribuindo a disseminação deste fundamentalismo a lideranças que "mercantilizam a religião" com objetivos de atingir poder.
Cotidianamente essas práticas são observadas junto às igrejas neopentecostais. Trata-se de mais uma ação de desmoronamento da esquerda.
— Quando foi formado o PT, o poder da Igreja Católica era muito grande. Houve uma inclinação de uma parcela desta igreja que, arrependida de ter apoiado o golpe militar contra João Goulart, se aproximou da Teologia da Libertação. Era esse setor que costurava muitas das aspirações populares. Hoje, quem chega mais nas periferias são as neopentecostais, que em maioria estão com o Bolsonaro — frisa Lima Rocha, apontando novo mecanismo de perda de comunicação da esquerda com as massas periféricas, antigo reduto esquerdista.
Historiador, Axt avalia o conteúdo debatido nas eleições presidenciais como "pobre", sem discussão de projeto de país. Não raro, bate-bocas acalorados priorizaram retóricas ideológicas como "comunismo", "fascismo", "Foro de São Paulo", "Ursal" e outros delírios que ajudaram a ganhar votos pelo WhatsApp, mas impediram o debate da vida real.
— Conseguiram reconstruir o clima de Guerra Fria sem o opositor — pontua Lima Rocha.
Para especialistas, ao comentar o chamado "neopopulismo", o avanço da extrema-direita na Europa e nos Estados Unidos guarda mais diferenças do que semelhanças com o que acontece no Brasil. As similaridades ficam limitadas à "guerra cultural". O novo populismo brasileiro é baseado no tema ético, na segurança pública e no conservadorismo cultural. Na Europa, tem mais vinculação com os reflexos da globalização, a crise humanitária e as instabilidades causadas por conflitos e guerras.
— Bolsonaro é um neopopulista, e isso hoje é uma característica nas democracias, a partir de uma retórica do bem contra o mal, do cidadão de bem contra o sistema. O corte dele é moral e cultural. O corte do Lula, por exemplo, era mais econômico, do pobre contra o rico, um estilo mais antigo de populismo. Se o Bolsonaro é um fenômeno eleitoral ou algo mais do que isso, veremos no futuro. Ele se elege com o discurso antissistema, mas agora terá de lidar com o sistema e com as instituições — projeta Schüler.
Fatores da vitória de Jair Bolsonaro
- Os protestos de junho de 2013 deram a largada para a corrosão e a descrença dos partidos tradicionais e das instituições. Também surgiram organizações de direita e de extrema-direita que viriam a crescer e ganhar protagonismo. Eclodiu o ressentimento social e a base para o discurso moralista.
- Em 2014, o avanço da operação Lava-Jato desmoralizou o PT e grande parte da classe política por conta dos casos de corrupção na Petrobras. No final do mesmo ano, a crise econômica abateu fortemente o país, criando uma massa de desempregados e recessão.
- Setores das esquerdas, ao cometerem supostos excessos nas pautas identitárias, acabaram chocando parte da população, causando reações extremas rumo ao conservadorismo. Houve afastamento do discurso da esquerda em relação às expectativas mais prementes das massas populares.
- O desgaste da política, das siglas tradicionais e a crise econômica criaram terreno para o surgimento de um "outsider", posto no qual Bolsonaro se encaixou, apesar de somar quase três décadas de mandato na Câmara.
- A retórica de Bolsonaro, direta, simplista e, por vezes, chula, foi compreendida pelo homem comum. Seja na guerra cultural ou na segurança pública, ele conseguiu captar e amplificar através de sua voz o sentimento do eleitor médio.
- Jair Bolsonaro usou como nenhum outro político os dispositivos modernos de comunicação digital e direta com o eleitor, sem filtros ou mediações. Sua campanha trabalhou a distribuição de mensagens via WhatsApp em larga escala e, agora, está sob investigação porque teria violado regras e supostamente teria recebido o financiamento de empresários para a disseminação massiva de conteúdos — parte deles falsos —, o que é vedado.
- A onda de extrema-direita mundial também ajudou Bolsonaro. Embora guardem características distintas, movimentos semelhantes ao do Brasil, vitoriosos ou não, já foram verificados nos Estados Unidos, na Polônia, na Hungria, na Suécia, na França e na Holanda.
- O atentado a faca sofrido durante a campanha, embora seja um drama pessoal terrível, também é apontado como um fator que ajudou a reforçar a aura de "mito" em torno de Bolsonaro, além de ter servido como argumento para ele se ausentar de debates eleitorais.