Décadas depois da luta pelo direito ao voto, mulheres assistem às primeiras colheitas do pós-feminismo: a liberdade de costumes e o sufoco do machismo. O grito pela igualdade de gênero parece um movimento sem volta. Porém, ainda é arrastado quando o assunto é política.
A cada disputa, a tese de que o espaço pertence sobretudo a homens mostra-se real. Divulgado em março pelo Projeto Mulheres Inspiradoras, um ranking sobre a representatividade feminina no Executivo empurrou o Brasil para a 161ª posição dentre os 186 países analisados. E a eleição do próximo mês dificilmente representará um suspiro de mudança.
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 31,4% do total de candidaturas neste ano são de mulheres. Já nos cargos majoritários, a representatividade despenca: elas são 15,4% dos nomes que concorrem à Presidência e 14,6% dos pretendentes aos governos estaduais.
Para especialistas, as raízes do tímido número de candidatas são complexas. Passam pela dinâmica dos partidos, que dá prioridade aos quadros masculinos, pelo sistema eleitoral, que nunca promoveu incentivos reais à ocupação feminina, e pela cultura machista, que confere à mulher papéis à margem dos postos de poder.
— As nomeações majoritárias ocorrem para pessoas com uma trajetória de liderança dentro dos partidos. Infelizmente, poucas mulheres ocupam esses espaços nas organizações, o que se reflete nas candidaturas aos cargos mais importantes — resume a cientista política Malu Gatto, pesquisadora na Universidade de Zurique, na Suíça.
Dentre os 13 possíveis inquilinos do Palácio do Planalto, somente Marina Silva (Rede) e Vera Lúcia (PSTU) puxam o índice para cima. Já na disputa pelo Piratini, a disparidade acentua-se. Desde 2002, é a primeira vez que os gaúchos não tem sequer uma mulher em quem votar para governadora.
— A ausência de mulheres candidatas pode ser um reflexo do crescimento do conservadorismo no Rio Grande do Sul, Estado onde (Jair) Bolsonaro, uma pessoa totalmente contrária às pautas feministas, tem grande apoio eleitoral. É um aspecto negativo porque prejudica debates importantes às mulheres e as coloca à margem do debate eleitoral — analisa Teresa Marques, professora na Escola de Humanidades da PUCRS.
Os números demonstram o paradoxo entre a política brasileira e as suas mulheres. Mesmo constituindo a maioria do eleitorado — 52,5%, segundo o TSE —, elas estão menos representadas. É um cenário que se retroalimenta há décadas, consolidando a desigualdade de gênero, afirma Malu.
— Se mais mulheres ocupam a política, mais mulheres percebem que podem ocupá-la. Existe essa noção na literatura: quanto mais elas estiverem inseridas, mais se normaliza esse espaço. As mulheres são mais da metade da população brasileira e, por isso, devem estar representadas de forma proporcional. Por uma perspectiva democrática, a política deveria ser o espelho da população — defende a cientista política.
Se mais mulheres ocupam a política, mais mulheres percebem que podem ocupá-la. Quanto mais elas estiverem inseridas, mais se normaliza esse espaço.
MALU GATTO
Pesquisadora na Universidade de Zurique, na Suíça
Desde a década de 1990, o país tem reservada a cota de 30% das candidaturas proporcionais para mulheres. Apresentada pela então deputada federal Marta Suplicy em coautoria com outras 29 parlamentares, a lei surgiu como a primeira medida afirmativa para promover a igualdade de oportunidades. Mas, na prática, nunca se traduziu no aumento da representatividade.
Hoje, as mulheres são pouco mais de 10% da Câmara, e as próprias legendas admitem usar laranjas para preencher o percentual devido às dificuldades de recrutamento. Nas disputas municipais de 2016, 16 mil candidatos ficaram sem voto — 14,4 mil eram mulheres.
Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero da UFRGS, Jussara Prá admite a insuficiência do dispositivo. Para a professora, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de garantir mínimo de 30% do fundo partidário para candidaturas de mulheres representa um avanço, mas somente a reserva de cadeiras poderia estreitar a disparidade. Já as mudanças estruturais necessárias são imune a leis.
— Faz parte de um processo de ausência feminina na tomada de decisões em todas as instâncias. É preciso uma mudança na cultura de gênero, ainda muito tradicional ao delimitar papéis e expectativas às mulheres — diz Jussara.
Vices figurativas?
Maioria do eleitorado e líderes entre os indecisos, as mulheres chegaram às eleições de outubro como o voto a ser conquistado. Representando 52,5% dos votantes, assistem a uma campanha direcionada para atraí-las.
Marina Silva (Rede) vem acenando às mulheres em discursos sobre gênero. Já Geraldo Alckmin (PSDB) colocou no ar um vídeo questionando se "você gostaria de ter um presidente que trata as mulheres como Bolsonaro" e Ciro Gomes (PDT) vem buscando romper a imagem de machismo.
De acordo com o último Datafolha, publicado na segunda-feira (10), 39% das mulheres ainda não encontraram o seu candidato à Presidência — entre os homens, o percentual cai para 15%. Do total feminino, 11% não sabe quem escolher e 18% disse que irá votar branco, nulo ou em ninguém.
— Os candidatos estão querendo atrair as mulheres não só porque elas são maioria entre o eleitorado, mas também porque são a maioria entre os indecisos. Percebemos isso nas campanhas, com os candidatos vendo o voto feminino como decisivo — avalia Malu Gatto, cientista política da Universidade de Zurique, na Suíça.
Pelo Datafolha, outro dado reforça que as mulheres estão mais hesitantes. Enquanto 61% dos homens afirmou que não irá mudar de voto, 51% das mulheres admitiram que ainda pode alterá-lo.
Na disputa à Presidência, um dos sintomas da tentativa de captura do eleitorado feminino está na colagem de mulheres às chapas. Dentre as três candidaturas empatadas no segundo lugar à exceção de Marina, três escolheram vices mulheres — Ciro Gomes (PDT) e Kátia Abreu (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB) e Ana Amélia Lemos (PP), Fernando Haddad (PT) e Manuela D'Ávila (PC do B). Jair Bolsonaro (PSL) tentou, mas não conseguiu convencer a advogada Janaína Paschoal e acabou indicando um homem.
— As escolhas podem ser entendidas pelo interesse dos candidatos em atrair o voto das mulheres, que será decisivo, mas é mais do que isso. São candidatas fortes e com eleitorado próprio para além da questão do gênero. Se deixarmos de lado o seu capital, também estaremos menosprezando a sua força política — completa a cientista política Teresa Marques, da Escola de Humanidades da PUCRS.
— Parece que, pela primeira vez, as mulheres se tornaram o centro das eleições — conclui Malu.
O que dizem os planos de governo dos presidenciáveis sobre mulheres
Nada.
Nada.
Dedica um tópico específico ao "respeito às mulheres". Entre as medidas, prevê políticas públicas às mulheres que vivem em "contexto de desvantagem social em diversas dimensões de poder e direitos". Defende medidas para prevenir a violência contra mulheres, como o incentivo à abertura de novas delegacias especializadas, e a abertura de creches para possibilitar que mães ingressem no mercado de trabalho. Também promete igualar o número de homens e mulheres nos postos de comando do governo federal, recriar a Secretaria das Mulheres e promover campanhas para aumentar a participação feminina na política.
Nada.
Defende a "redução das desigualdades sociais" para "ampliar o acesso à saúde, combater a violência e promover o respeito às mulheres". Também prevê "estabelecer um pacto nacional" para reduzir a violência contra as mulheres.
Defende a luta contra a desigualdade e pelos direitos das mulheres. Entre as propostas, está uma reforma política que institua cotas para mulheres nas candidaturas proporcionais e majoritárias "com distribuição proporcional de recursos do fundo eleitoral e partidário". Também prevê medidas afirmativas para incluí-las nos quadros do Judiciário, a legalização do aborto, o direcionamento de 1% do PIB para o combate à violência contra a mulher e a discussão de gênero nas escolas.
Menciona que as mulheres trabalham, em média, três horas por semana a mais do que os homens, "combinando trabalhos remunerados, afazeres domésticos e cuidados de pessoas", e que, "mesmo com um nível educacional alto", ganham 76,5% do rendimento dos homens. Pretende incentivar a queda nessa disparidade salarial por meio da lei trabalhista aprovada em 2017.
Defende o combate ao estupro de mulheres e crianças, bem como de homicídios e roubos, por meio do investimento em equipamentos, do fim da progressão de pena, da redução da maioridade penal e do armamento da população.
Nada.
Prevê erradicar a "super-exploração do trabalho da mulher", "tornar realidade o princípio do pagamento de salário igual" e ampliar a licença-maternidade para um ano. Menciona que há na sociedade "vários obstáculos à afirmação da mulher enquanto ser humano" e que "cabe ao Estado proporcionar às mulheres todas as garantias para que possam se desenvolver plenamente".
Quer promover políticas para as mulheres "visando a igualdade de gênero" em um "Sistema Nacional de Direitos Humanos". Em 62 páginas, menciona a palavra "mulher" 34 vezes. Diz que as mulheres estão entre os grupos sociais "historicamente marginalizados" e "consequentemente, mais atacados em seus direitos na atual crise". Defende o combate ao machismo e a paridade de gênero na composição das listas de campanha e diz que recriará a pasta de Políticas para as Mulheres com status de ministério, "afirmando o protagonismo das mulheres no novo ciclo de desenvolvimento brasileiro" por meio de políticas que promovam "autonomia econômica, igualdade de oportunidades e isonomia salarial".
Tem um tópico dedicado às mulheres. Quer ampliar as políticas de prevenção à violência contra a mulher, o combate ao feminicídio e a qualificação da rede de atendimento às vítimas. Para promover a igualdade, prevê "políticas que enfrentem a discriminação no mercado de trabalho" para "garantir igualdade salarial para mulheres e homens nas mesmas funções" e a "ampliação da participação de mulheres em cargos e posições de tomada de decisão". Também quer ampliar a oferta de vagas em creches em tempo integral e o tempo de licença paternidade para chegar a um sistema de licença parental.
Menciona que "as mulheres trabalhadoras morrem nas clínicas clandestinas de aborto ou vítimas do feminicídio", o que seria "produtos da exploração, da desigualdade e da opressão imposta pelo capitalismo". Por isso, defende o combate a todo o tipo de violência à mulher, a igualdade de direitos e salários e a liberação do aborto livre e gratuito.