O atual ciclo de crise e violência política ascendente habita o Brasil desde 2013, com os protestos de junho daquele ano, quando foi aberta uma espiral de intolerância que segue pulsando cada vez mais firme. O atentado a faca ao presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), avaliam cientistas políticos, filósofos e historiadores, se converteu no ponto máximo de meia década de nervos exasperados.
— É o momento mais longo em tensão na história política republicana do país, ao menos a partir do século 20. A crise de Getúlio Vargas, em 1954, se estendeu por 19 dias. Depois de 2013, tivemos a reeleição da Dilma Rousseff, o processo de impeachment, o governo de Michel Temer e as diversas denúncias contra ele, a condenação e a prisão de Lula. O Brasil nunca teve, em uma campanha de eleições diretas, uma tentativa de assassinato como a que ocorreu. Foi a primeira vez. Daí o tamanho da preocupação — analisa Marco Antonio Villa, historiador e pesquisador da política brasileira.
O golpe que perfurou a barriga de Bolsonaro na quinta-feira, durante ato de campanha em Juiz de Fora (MG), impõe ao país uma decisão crucial: construir a alternativa do serenar de ânimos, mantendo a disputa no campo político, ou permitir que o episódio sirva de fagulha para que a sociedade escorregue definitivamente à violência.
— Chegamos a uma encruzilhada com esse atentado. Ele pode servir como um freio para que todo mundo se dê conta de que a radicalização em curso é, de fato, uma ameaça à democracia brasileira. É hora de responsabilidade para que todos os partidos moderem seus discursos e que se evite uma guerra. A outra possibilidade, nesta encruzilhada, é de que o país realmente descambe para novos atentados e confrontos de rua — avalia o sociólogo e jornalista Marcos Rolim.
Filósofo e professor da USP, Pablo Ortellado aponta o risco de o Brasil ingressar em um “ciclo de revide”. É o que acontecerá caso simpatizantes de Bolsonaro decidam perpetrar uma vendeta contra esquerdistas, que, por sua vez, se arvorariam legitimados a retaliar novamente, apontando que o suposto início da onda de ataques teria iniciado com as lambadas de relho e os tiros de arma de fogo disparados contra a caravana de Lula no Rio Grande do Sul ou com o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), ambos em março.
— Não é relevante quem começou. O que não podemos permitir é que se use um atentado anterior para justificar o atual. A realidade da nossa região, quando olhamos para a Colômbia, o México e a Venezuela, mostra que, uma vez que se entra na dinâmica da violência política, ela se torna cíclica e é muito difícil de interromper, porque cada lado sempre se sente no direito de revidar — alerta.
Em um campo de batalha cada vez mais desenhado, os oponentes mais visíveis, embevecidos pela paixão por seus líderes, são os lulistas e os bolsonaristas. Principal líder político do país, Lula foi condenado e está preso por corrupção. Uma parcela de militantes do PT soma o cárcere, interpretado por eles como persecutório, ao impeachment de Dilma para alimentar um discurso de descrença nas instituições. Os seguidores de Bolsonaro, que havia sugerido “fuzilar petralhas” no Acre dias antes de ser esfaqueado, indicam que vão acusar a eleição de ser fraudulenta caso o seu candidato não vença. Nas duas vias, a corrosão do processo civilizatório traz a violência como solução.
Líderes dos partidos têm papel importante para frear a crise
A avaliação de especialistas é de que a saída para a crise passará por um chamamento racional, com papel preponderante das referências.
— Quando as lideranças verbalizam a violência, a militância é estimulada a isso. Há pessoas dispostas ao confronto de rua nos dois lados dessa polarização. As lideranças têm a função de constranger, nas suas bases, aqueles que estão dispostos ao confronto — diz Rolim.
Mais confiante em uma saída pacífica, Villa não crê na eclosão de uma rotina de atentados, desde que “a disputa seja colocada no campo político”. Ele avalia que a situação seria mais grave — e talvez incontornável — se o crime tivesse sido cometido por uma facção partidária:
— Isso me parece uma questão central: foi um atentado ao político, e não um atentado político. Foi cometido por um homem, sem organização política no ato deste cidadão tresloucado que diz ter agido “por ordem de Deus”.
As primeiras reações dos candidatos foram consideradas adequadas. Houve condenação unânime ao atentado, visto como inaceitável e merecedor de rápida investigação e punição de Adelio Bispo de Oliveira, o agressor confesso. Os presidenciáveis suspenderam temporariamente agendas de campanha, transmitiram mensagens serenas e sentimento de pronta recuperação a Bolsonaro. Afora os postulantes ao Planalto, contudo, houve escorregões.
— Lideranças do PT colocaram em dúvida se, de fato, houve o atentado. Do outro lado, Janaína Paschoal atribuiu isso tudo ao PT. E o general Mourão (vice de Bolsonaro) disse que eles são os profissionais da violência. São declarações preocupantes — avalia Ortellado.
Além de citar negativamente manifestações da esquerda, por entender que o discurso de Bolsonaro deve ser separado de um fato do qual ele foi vítima, Rolim menciona uma exclamação do presidente do PSL, Gustavo Bebianno, após o atentado: “Agora é guerra”.
— Se essa for a reação dos partidários, a situação vai sair totalmente de controle — afirma Rolim.
As virulentas redes sociais são outro fermento do caldo de cultura da radicalização. A facada contra o líder das pesquisas eleitorais, condição herdada após a rejeição do registro de Lula pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), catapultou novas manifestações de ódio e teorias conspiratórias. Adelio Bispo de Oliveira era um disseminador de intolerância no Facebook, tendo Bolsonaro e a maçonaria como alvos preferenciais, publicadas em meio a teses obsessivas e críticas generalizadas a políticos. O imponderável é determinar quando um sujeito tomará a decisão de cruzar a linha que separa a agressão virtual da violência física. Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Fábio Malini apresenta visão oposta aos que temem pelo recrudescimento da campanha:
— Não creio na tese do acirramento eleitoral. Acredito que, em alguns dias, vai cair no limbo digital, vão surgir novas polaridades porque a vida continua, assim como a prisão do Lula foi decantando. A comoção não dura muito tempo. Já tivemos o precedente da Marina Silva, em 2014, quando ela subiu muito nas pesquisas (após a morte de Eduardo Campos, então cabeça de chapa), mas houve uma desconstrução rápida e ela não foi ao segundo turno.
As reações
A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV) publicou um mapa de interações no Twitter após o atentado contra Jair Bolsonaro, dividindo a repercussão do fato na rede social em cinco grupos. Foram monitorados 3,2 milhões de menções geradas no Twitter em período de 16 horas após o ataque ao candidato.
- 40,5% dos perfis se referiram ao ataque como uma “fake facada”, ironizando as críticas da direita à falta de empatia da esquerda.
- 12,7% demonstraram apoio a Bolsonaro, com desejo de recuperação, vitória na eleição e crítica à esquerda por seus posicionamentos.
- 9,8% repercutiram mensagens de solidariedade, como as de Ciro Gomes e de Fernando Haddad, acompanhadas de observações sobre a falta de empatia de Bolsonaro em situações similares.
- 8,7% criticaram quem ficou feliz com o ataque, pois estes não seriam diferentes em nada do candidato à Presidência.
- 7% criticaram a esquerda por suspeitar da veracidade do ataque. Demonstraram solidariedade ao candidato.