Uma cidade que enfrenta as consequências do tráfico de drogas. No primeiro mês de 2024, 17 homicídios foram cometidos em Caxias do Sul, tornando o período o janeiro mais violento em 13 anos. E uma característica principal traduz as razões que fizeram esse crime crescer. De acordo com o levantamento dos setores de inteligência da Brigada Militar e da Polícia Civil, todos os casos têm relação com organizações criminosas que comercializam drogas. Entre eles, 15 mortes seriam acerto de contas e duas aconteceram em confrontos com as forças policiais.
A situação ficou tão crítica que, em apenas sete meses, foram necessárias três grandes movimentações das forças de segurança para conter o avanço no número de mortes, com foco total em ações que envolveram setores especializados e incremento no número de efetivo de policiais.
O aumento de homicídios no primeiro mês do ano, inclusive, está diretamente ligado à disputa declarada entre os grupos, que medem forças na Serra gaúcha, tanto em poder de fogo quanto em expansão territorial e ramificação de suas forças na região. E no tabuleiro de quem quer mostrar maior presença e aumentar seus pontos de venda, as lideranças criminosas tornam-se alvos com ameaças constantes de eliminação pelos rivais.
Foi o que aconteceu no assassinato de Jeferson Neves Montanari, o Fera, em junho de 2023, em Vacaria. Mesmo fora de Caxias, conforme a BM, ele atuava de forma intensa no controle de uma das facções, e foi morto por membros de grupo oposto. Também de acordo com os órgãos de segurança, foi essa execução que deflagrou a onda de violência que se verificou nos meses seguintes e culminou nos 17 homicídios de janeiro em Caxias.
Depois da execução do líder do tráfico, outro episódio reacendeu a tensão e culminou em outro mês sangrento na cidade. O estopim para o aumento foi a morte de um bebê de seis meses, vítima de uma das ações violentas entre grupos no dia 1º de outubro. O assassinato fez crescer novas represálias e acerto de contas. O mês terminaria com 12 mortes violentas, conforme a BM.
No dia 6 de janeiro deste ano, houve último o evento dessa linha do tempo da violência. Ao deixar o presídio em Caxias do Sul, Bruno Minozzo da Silva, 33, apontado como um dos supostos líderes da organização rival do grupo de Fera, foi morto a tiros no interior de um veículo a caminho de Porto Alegre. O homicídio aconteceu no município de São Vendelino.
Perfil das vítimas dos assassinatos em janeiro
- Jovem adulto do sexo masculino
- Faixa etária entre 20 anos e 30 anos
- Passagens na polícia por crimes como roubo, homicídio e tráfico de drogas
Esforço para tirar drogas e armas das ruas
O responsável pelo Comando Regional de Polícia Ostensiva da Serra (CRPO/Serra), coronel Márcio da Luz, confirma a disputa entre as organizações criminosas e ressalta o esforço da BM em tirar drogas e armas das ruas para que a população tenha mais segurança, mesmo com os números de assassinatos em alta.
— Nós sabemos que os crimes vão continuar. O que buscamos fazer é diminuir o ímpeto das organizações com as nossas ações, o uso da força tática, aumento de efetivo no policiamento ostensivo, sufocando o tráfico. Tiramos de circulação armas que fatalmente seriam usadas em outros crimes. Esse é o grande objetivo — avalia o comandante.
A disputa dos grupos por território e poder fazem as comunidades de Caxias e região sentirem o impacto na segurança. Além dos 19 assassinatos cometidos em 2024 (17 em janeiro e dois em fevereiro), outras 15 mortes da mesma natureza aconteceram na Serra neste ano. A maioria com o tráfico de drogas como pano de fundo. Apesar dos números apontarem que a violência gira em torno de membros de facções, a polícia trata o cenário sem distinção de locais ou vítimas. É o que salienta o comandante do 4ª Batalhão de Choque da Polícia Militar, major Diego Soccol.
— A Brigada se preocupa com os homicídios ocorridos entre as organizações criminosas, na maioria das vezes tendo como motivação a disputa pelos pontos de venda de entorpecentes, porque tais crimes interferem diretamente na sensação de segurança de toda a sociedade local — salienta Soccol.
Protocolos de atuação das forças de segurança
Quando os números saem do controle, todas as partes que comandam a segurança da Serra se reúnem em caráter de urgência para colocar em cena o que chamam de Protocolos de Atuação. Formam a força-tarefa a Brigada Militar (CRPO/Serra, 12º Batalhão da Polícia Militar e 4º Batalhão do Choque), a Polícia Civil (Delegacia de Homicídios, Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Delegacia Regional da Serra) e a Polícia Penal. Foi o que aconteceu desde julho do ano passado, com três grandes movimentações das autoridades.
Além de intensificar o patrulhamento e trabalhar na prevenção de crimes, as ações têm a clara meta de estancar os assassinatos, por meio do enfraquecimento dos grupos. São ações como a ocupação espaços e o policiamento em bairros e comunidades com histórico recente de mortes ligadas ao tráfico, apreensão de drogas e armamentos para diminuir o poder financeiro dos grupos e solicitação de transferências de presos de cadeias do município para estruturas de maior segurança no Estado, entre outras.
O comandante do 12º BPM, tenente-coronel Ricardo Moreira de Vargas, ressalta a forma como a corporação estuda e emprega seu efetivo na contribuição para o protocolo.
— Nosso setor de Inteligência repassa informações a todo momento e, somadas aos dados dos demais setores de outros órgãos envolvidos, traçamos a estratégia. A partir disso, mapeamos as áreas onde podemos ter problemas. Geralmente, as contravenções ocorrem em lugares onde, momentaneamente, não estamos cobrindo. Esse cenário muda quando nos reunimos e agimos rapidamente, inclusive com a utilização de mais homens, trabalhamos em todos os pontos críticos, sem descuidar de nenhuma região da cidade — afirma Vargas.
Prisão de líderes conteve novas execuções
Um dos supostos líderes das organizações que seguem em confronto na Serra, Osoni da Conceição foi capturado em ação da Delegacia de Homicídios de Caxias do Sul, Polícia Federal e 4º Batalhão de Choque da Brigada Militar, no dia 9 de janeiro, na cidade do Rio de Janeiro. Condenado em 2009 por triplo homicídio, estava foragido desde 2020, quando foi beneficiado pela progressão de regime do restante da pena, a ser cumprido no semiaberto, com o uso de tornozeleira eletrônica. Ozoni desarmou o sistema de monitoramento, e estava sendo procurado há 4 anos.
Nesta semana, a polícia diz ter localizado em Itapema (SC) outro importante membro de uma das facções em nova ofensiva contra a recente onda de homicídios. Ele estava sendo procurado há pelo menos um ano, também depois de ter se desfeito da tornozeleira eletrônica. A ação foi coordenada pela PC e Polícia Federal. O homem não teve o nome divulgado.
Ausência do sistema semiaberto favorece onda de crimes
A falta da transição adequada entre os sistemas de progressão penal atrapalha a luta contra o tráfico e favorece onda de crimes violentos em Caxias. Atualmente, todo preso que deixa o regime fechado vai direto para o aberto, com uso de tornozeleira eletrônica, pulando o semiaberto, que obrigaria o detendo a ter algum vínculo trabalhista e dormir na cadeia. Caxias não tem regime semiaberto desde agosto de 2016, após interdição judicial. A avaliação comum entre os agentes de segurança é corroborada pelo delegado regional da Polícia Civil, Augusto Cavalheiro Neto.
— Muitos dos envolvidos em crimes de homicídio e tantos outros delitos estão no regime aberto, quando deveriam estar no semiaberto. Muitos não cumprem sequer a prisão domiciliar. Isso acaba por dificultar o trabalho da polícia — aponta o delegado.
Em relação ao combate aos grupos criminosos, Cavalheiro é enfático ao afirmar que a prioridade da PC é a captura de seus líderes por meio de investigações que garantam o embasamento para acusação e permanência dos criminosos no sistema prisional.
— Nosso objetivo é prender todas as lideranças, de qualquer organização criminosa – encerra Cavalheiro.
No mesmo sentido, o comandante do 12º BPM ressalta a dificuldade que o atual sistema ocasiona.
— A segurança pública não é construída apenas por ações isoladas de uma ou outra instituição. O problema não é prender mais. Para a polícia, o problema é prender mais vezes as mesmas pessoas. As polícias dependem organicamente de um conjunto de ações de todo Sistema de Justiça Criminal para que a prevenção dos crimes seja efetiva. Hoje, o retrabalho policial gera um sério prejuízo para toda a sociedade — enfatiza o tenente-coronel Vargas.
A falta do sistema de cumprimento de pena no regime semiaberto na Serra também é tema preocupante para a diretora do Fórum de Caxias do Sul, juíza Joseline Mirele Pinson de Vargas. Ela aponta o fato da insuficiência de tornozeleiras eletrônicas para controle total dos presos que progridem para o regime aberto como fator agravante do atual cenário da violência.
— Nenhum estabelecimento prisional da região, hoje, possui regime semiaberto. E o que piora a situação é a falta de tornozeleiras eletrônicas para todos os presos. Isso propicia, sim, que aquele detento que não quer buscar ressocialização logo volte ao crime, dificultando o controle — explica Joseline.
A magistrada também acredita que a falta de investimentos na aquisição de mais dispositivos de fiscalização para os apenados que estão em prisão domiciliar contribui para o problema.
— É um tema controverso porque a sociedade não vê o investimento no sistema prisional como investimento em segurança pública. Mas é. Porque os presídios estão tomados por integrantes de facções, e investir neste controle é muito importante para segurança de todos — conclui a juíza.
O que diz a Susepe
"A Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) informa que o fornecimento de tornozeleiras está regularizado, a partir de uma nova empresa contratada no final de 2023. Com isso, recentemente, foram iniciadas as instalações em apenados que aguardavam a disponibilidade dos equipamentos, de maneira a atender todas as decisões judiciais estaduais. Nos próximos meses, não haverá mais apenados aguardando a instalação, já que o fornecimento dos dispositivos, recentemente contratados, contemplam as pendências atuais.
Além disso, salientamos que não existem critérios padronizados para inclusão de pessoas privadas de liberdade no sistema de monitoramento. A designação do uso desse equipamento varia de acordo com cada Vara de Execução Criminal, que determina as hipóteses para cumprimento de pena mediante monitoração eletrônica.
A Susepe possui vagas disponíveis para o regime semiaberto em algumas unidades prisionais. Contudo, muitas vezes, elas não correspondem aos locais próximos dos familiares dos apenados, onde, geralmente, por imposição legal, deve ocorrer a execução da pena."
Presídios sem bloqueio de sinal de celular
As casas de detenção de Caxias do Sul têm uma característica em comum. Tanto o Presídio Regional (Pics) quanto a Penitenciária Estadual (Apanhador) não têm equipamentos tecnológicos capazes de bloquear o sinal de aparelhos celulares. A insuficiência permite que presos fiquem em contato com os comparsas que seguem controlando os pontos de tráficos na região. A situação, apontada como preocupante pelos comandantes das forças policiais, é a principal razão para que os principais líderes dos grupos criminosos tenham suas transferências solicitadas a presídios do Rio Grande do Sul que possuem a estrutura necessária para travar a comunicação dos traficantes.
Números apontam queda da criminalidade
Apesar da alta de homicídios, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública do RS, diversos crimes tiveram redução nos últimos anos na cidade, caso de latrocínio, roubo a pedestres, de veículos, a estabelecimentos e residências. Vargas analisa como positivo o cenário, considerando o tamanho do município.
— Caxias do Sul apresenta indicadores de segurança próprios de uma cidade com mais de meio milhão de habitantes. Em determinados momentos, esses indicadores irão oscilar com menor ou maior volume, como é o caso dos homicídios. Prova disso, é que se pegarmos os homicídios nos últimos 15 anos, veremos que em apenas cinco estivemos abaixo da contagem de cem vítimas, incluindo o ano de 2023, que contabilizou 98 homicídios — pontua o comandante do 12º BPM.
A queda nos crimes também é o que faz o comandante do CRPO/Serra, coronel Márcio Luz, reforçar a atuação da polícia na comunidade.
— Trabalhamos com os menores índices da série histórica nesses crimes. Fruto do que estamos implantando há anos na segurança pública de Caxias e em toda Serra. Tirar drogas e armas das organizações também gera esse resultado — analisa o coronel.
Ele também faz a conexão entre a diminuição do número de latrocínios com a queda de roubos registrados.
— Qualquer ocorrência de roubo, para se tornar em latrocínio, é muito rápido. Diminuir os roubos repercutiu também no número de mortes — avalia o comandante do CRPO/Serra.
Linha do tempo
Junho de 2023: No dia 26, Jeferson Neves Montanari, o Fera, é assassinado em Vacaria. Com histórico em Caxias do Sul, ele era apontado como uma das supostas lideranças do tráfico de drogas na região. A morte provocou represálias entre os grupos criminosos, resultando em mais assassinatos nas semanas seguintes na maior cidade da Serra. Segundo as investigações, 11 mortes subsequentes estavam relacionadas ao caso de Fera.
Julho de 2023: de forma conjunta, a polícia reage e monta ações para estancar novas execuções, identificar mandantes e executores de crimes. Com isso, há uma queda no número de homicídios em Caxias do Sul, com seis casos em agosto e sete casos em setembro.
Outubro de 2023: no primeiro dia do mês, um bebê de seis meses morre após ser baleado no colo do pai no loteamento Cidade Industrial. Para a polícia, a ação envolveu organizações criminosas. Em consequência, o número de assassinatos em Caxias do Sul sobe para 12 no mesmo mês. Em novo protocolo de atuação, a força-tarefa da polícia novamente age para diminuir o número de mortes violentas. A cidade volta a ter são cinco casos no mês seguinte. O suspeito da morte do bebê foi preso.
Janeiro de 2024: o homicídio de Bruno Minozzo da Silva, apontado como um dos líderes da mesma organização rival de Fera, em São Vendelino, reacente o confronto entre grupos rivais de Caxias do Sul. Silva foi baleado dentro de um carro em um posto de gasolina no dia 6. Nas semanas seguintes, a cidade registra o janeiro mais violento em 13 anos, com 17 assassinatos.
Flagrantes, crimes e morte em confronto
A Brigada Militar usa o caso de um jovem de 21 anos envolvido com a criminalidade em Caxias para exemplificar como as brechas na legislação favorecem a violência. O rapaz, que teve o nome omitido e foi morto em confronto com a polícia em janeiro deste ano, é dos muitos exemplos de jovens cooptados pelo mundo do crime que têm a vida interrompida de maneira breve, em um caminho curto e fatal pela ligação com as facções.
Conforme dados do CRPO/Serra, o rapaz registrava diversas passagens em sua ficha criminal. A primeira, em abril de 2023, por roubo de veículo. Solto horas depois, foi preso no mesmo dia cometendo outro roubo de carro. Capturado e solto em outras ocasiões, sua última condução ao sistema prisional havia sido no dia 12 de janeiro. Dois dias depois, entrou em confronto com a Brigada Militar após se envolver em um assassinato, e morreu numa troca de tiros.
Os passos
23/4/2023 (manhã):
Primeira prisão por suspeita de roubo de veículo.
23/4/2023 (noite):
Preso de novo, no mesmo dia, pelo mesmo crime.
28/10/2023:
Preso por suspeita de tentativa de homicídio a membro de organização rival.
20/12/2023 (tarde):
Preso por receptação de carro roubado.
20/12/2023 (noite):
Preso com veículo roubado e placa clonada.
11/01/2024:
Preso por porte ilegal de arma.
12/01/2024:
Apesar do histórico, é colocado em liberdade menos de 24 horas depois da nova prisão.
15/01/2024:
Suspeito de matar um rival de grupo criminoso na zona norte de Caxias, morre pouco depois em confronto com a polícia.