A Polícia Federal irá analisar elementos e provas apreendidas na manhã desta sexta-feira (17) em operação referente ao caso de trabalho análogo à escravidão deflagrado em Bento Gonçalves no mês passado. O balanço da Operação Descaro foi apresentado em coletiva de imprensa na delegacia da PF em Caxias do Sul no final desta manhã.
Segundo o delegado Adriano Medeiros do Amaral, da PF, em relação às vinícolas que contratavam o serviço da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, de Bento (a terceirizada que fornecia a mão de obra dos 207 trabalhadores resgatados), ele disse que não foram levantados, até o momento, indícios de atuação no crime de redução ao trabalho análogo à escravidão, que é investigado pela PF. O delegado destaca que a constatação preliminar não incide na esfera trabalhista, que segue sendo investigada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi pagarão R$ 7 milhões, sendo R$ 2 milhões para indenização dos trabalhadores.
A operação começou por volta das 6h contando com apoio do Exército e da Brigada Militar (BM). Foram cumpridos seis mandados em Bento Gonçalves e um em Garibaldi. O objetivo da ação foi aprofundar as investigações e coletar novos elementos de prova a respeito do caso dos 207 trabalhadores, a maioria baianos, resgatados em trabalho similar à escravidão em 22 de fevereiro. Foram apreendidos celulares, armas, computadores e um aparelho de choque em uma das residências.
Conforme Amaral, o material apreendido será analisado e, num segundo momento, serão chamados os investigados para prestarem depoimento. O prazo do inquérito de 30 dias se encerra no dia 22 e vai ser prorrogado, segundo Amaral.
Seis pessoas foram os alvos das medidas judiciais executadas nesta sexta. Segundo a PF, elas são suspeitas de integrar uma organização criminosa voltada à prática do crime de exploração de trabalho análogo à escravidão. A ação mira dois empresários, um policial militar e três seguranças. Eles são investigados por manter os 207 trabalhadores em condições degradantes, tanto na colheita da uva como em um alojamento em Bento Gonçalves, onde eles pernoitavam.
Os nomes não foram divulgados pela PF, mas a reportagem apurou que um dos investigados é o empresário baiano Pedro Augusto Oliveira de Santana, radicado há 10 anos na Serra. Especializado em intermediar fornecimento de mão de obra para empresas que atuam com frangos e uvas na Serra, ele contrata muitos conterrâneos e se tornou suspeito de manter trabalhadores em condição análoga à escravidão. A esposa de Santana também foi alvo dos mandados desta manhã.
Outro dos mandados teve como alvo o soldado Márcio Squarcieri, 39 anos, que atua no 3º Batalhão de Policiamento de Áreas Turísticas (Bpat), em Bento. Ele é suspeito de chefiar a segurança na pousada de onde 207 safristas foram resgatados e está afastado. Este mandado foi acompanhado pela Corregedoria da Brigada Militar.
— Foi identificado um suspeito somente, há indício da participação dele nos fatos, mas não há de outros policiais militares e nem da estrutura da Brigada Militar, ele estava atuando de folga. Acompanhamos a PF na busca de elementos técnicos de prova, não foi encontrado nenhum ilícito e está em andamento a investigação dentro da BM para apurar outros elementos que possam colaborar para elucidar os fatos deste crime investigado como comum e não militar — afirmou o capitão Rodrigo Fausto Mendes, oficial da corregedoria da BM sobre a possível participação de outros policiais militares.
O policial em questão é investigado por tortura e por, supostamente, atuar como segurança privado para a pousada e para a empresa que contratou os trabalhadores. O advogado Maurício Custódio, que representa o policial, demonstrou contrariedade com o afastamento do cliente das atividades de policiamento. Ele considera isso um "pré-julgamento, precipitado", do PM, que inclusive tem condecorações na ficha funcional. Custódio também ressalta que não teve acesso aos autos, sequer aos depoimentos dos safristas que acusam seu cliente de tortura.
Outros três seguranças da pousada foram alvo da ação de busca e apreensão feita pela PF. A operação também realizou buscas contra o dono do alojamento onde foram encontrados os 207 safristas no dia 22 de fevereiro. É Fábio Daros, empresário de Bento, que também é proprietário de uma lotérica e uma loja de carros usados. Daros já foi preso por receptação de veículo roubado, anos atrás. Agora é investigado por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Nesta manhã, o delegado da PF, afirmou que a investigação ainda apura se as torturas denunciadas pelos resgatados teriam, de fato, relação com o trabalho ou se seriam para fins de mediação de conflitos entre os homens que pernoitavam no alojamento.
— A gente quer saber se a tortura tem a ver com o trabalho deles ou mera questão disciplinar, por um conflito entre grupos — declarou em entrevista.
Contrapontos
O que diz a defesa de Pedro Santana
O advogado Augusto Giacomini Werner divulgou nota a respeito da ação da PF: "O senhor Pedro é o maior interessado que a verdade dos fatos seja desvelada, motivo pelo qual, desde o início, colabora com as investigações realizadas pelas autoridades. No que se refere às armas, sua propriedade trata-se de um direito do Sr. Pedro, que as mantinha em condições regulares e registradas perante o órgão competente, de forma que as mesmas, ao contrário do que listado pelos meios de comunicação, somente foram apreendidas pelo fato de que, com a abertura do inquérito, abre-se processo administrativo junto à instituição para que apure sobre a manutenção da idoneidade do titular do direito. A desinformação da sociedade prejudica tanto as investigações, como a própria vida do Sr. Pedro, empresário de carreira sólida e reputação inquestionável que, antes de exercer o seu direito de ampla defesa no decorrer do devido processo legal, já é tratado por muitos como culpado".
O que diz a defesa de Márcio Squarcieri
O defensor dele, Maurício Custódio, está contrariado com o afastamento do policial do serviço. Considera isso um "pré-julgamento, precipitado", do PM, que inclusive tem condecorações na ficha funcional. E que a Corregedoria da BM fez o trabalho de maneira atabalhoada. Custódio também critica a falta de cautela na tentativa de obter confirmação de que Squarcieri é o PM apelidado de "Escocês" pelos safristas que acusam ele de tortura. O advogado diz que seu cliente está ameaçado e ressalta que nenhum objeto apreendido demonstra qualquer ilegalidade praticada pelo PM.
O que diz a defesa de Fábio Daros
A advogada Vanessa Dal Ponte afirmou que o processo corre em segredo de Justiça e que Fábios Daros não foi citado formalmente, até o momento. Dal Ponte disse ainda que não teve acesso aos autos do processo e que ela e o cliente manterão uma "postura colaborativa com a polícia no que for necessário para o esclarecimento dos fatos". Na operação desta sexta, o mandado de busca e apreensão foi cumprido na casa de Daros e, conforme a advogada, nada foi apreendido no local.
Manifestação das vinícolas
Após a operação desta manhã as vinícolas que contrataram a empresa investigada também se manifestaram.
A Cooperativa Vinícola Garibaldi declarou que "confia na correta apuração dos fatos, o que cabe às autoridades competentes".
A vinícola Aurora declarou, em nota, que "apoia todas as investigações em curso e continua à disposição das autoridades. Paralelamente, atua em diversas frentes para o restabelecimento dos direitos dos colaboradores terceirizados, vinculados à empresa Fênix, bem como na implementação das melhores práticas para gestão de terceiros e fornecedores. À sociedade brasileira, a Aurora reafirma seu compromisso de aperfeiçoar cada vez mais os processos produtivos e mecanismos de fiscalização."
Também por meio de nota, a Salton manteve posicionamento já publicado. Leia a nota na íntegra:
"A Vinícola Salton firmou, nesta quinta-feira (09/03), acordo com o Ministério Público do Trabalho para reparar danos causados a trabalhadores e à sociedade, em função de resgate ocorrido nas dependências da empresa Fênix Serviços Administrativos, flagrada mantendo trabalhadores em condições degradantes em um alojamento em Bento Gonçalves (RS). A Salton contratou 14 trabalhadores desta prestadora de serviços para carga e descarga de caminhões de uva na safra 2023.
Os termos do acordo, assinado pelas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, reforçam que as empresas concordaram voluntariamente com o pagamento, sob a forma de indenização, no valor de R$ 7 milhões, a ser rateado pelas empresas. Além de compor o fundo dos trabalhadores resgatados, o valor será revertido a entidades, projetos ou fundos que permitam a reparação dos danos sociais causados, a serem oportunamente indicados pelo Ministério Público do Trabalho.
A Salton ressalta que a assinatura voluntária deste termo tem o intuito de reforçar publicamente seu compromisso com a responsabilidade social, boa-fé e valorização dos direitos humanos, bem como a integridade do setor vitivinícola gaúcho.
A Salton e as demais vinícolas construíram conjuntamente com o Ministério Público do Trabalho procedimentos para fortalecer a fiscalização de prestadores de serviços para evitar que episódios lastimáveis voltem a ocorrer. Além disso, o acordo prevê, também, ampliar boas práticas em relação à cadeia produtiva da uva junto aos seus produtores rurais.
Por fim, o texto final do TAC declara que a celebração do acordo “não significa e não deve ser interpretada como assunção de culpa ou qualquer responsabilidade das COMPROMISSÁRIAS pelas irregularidades constatadas no curso da ação fiscal empreendida entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 2023 em Bento Gonçalves, que culminou no resgate de trabalhadores que prestavam serviços para a empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde Ltda”.
A Salton reforça que cumprirá prontamente as determinações do acordo e reitera que atuará ainda em frentes adicionais já apresentadas em nota pública, tais como revisão de todos os processos de seleção e contratação de fornecedores, com implantação de critérios mais rigorosos e que coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos humanos e trabalhistas; contratação de auditoria independente externa para certificar as práticas de responsabilidade social; adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, entre outras.
A empresa reitera que repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem a pacificação social. A Salton procura reafirmar com este acordo a sua não omissão diante deste doloroso fato, a sua demonstração genuína de amparo aos trabalhadores e à sociedade e o seu dever moral e legal em assumir uma postura mais diligente em relação aos seus prestadores de serviços.
Família Salton"