Ao acessar Caxias do Sul pela BR-116, é comum o visitante se surpreender e se encantar com o que pensou ser um pequeno município de aspecto bucólico cortado pela rodovia, um tal Galópolis. Mesmo alguns moradores caxienses chegam a confundir e pensar que se trata de um distrito, como de fato já foi, mas tais impressões mostram apenas como chama a atenção a vida própria na pequena vila surgida com a chegada dos imigrantes italianos à Serra.
Menina dos olhos de historiadores e arquitetos que pesquisam a região, Galópolis foi severamente atingida pela enchente que caiu sobre o Rio Grande do Sul na semana passada. Além de sete vítimas fatais confirmadas, mais de 170 famílias tiveram de deixar suas casas devido à iminência de mais desmoronamentos nas encostas que margeiam a BR-116. O geólogo da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Caio Torques, ressalta que o fato de serem áreas de ocupação muito antiga torna mais difícil o controle naquelas encostas.
- Galópolis tem uma ocupação anterior a quaisquer legislações ambientais que pudessem proibir a ocupação de encostas e de áreas de rios. Por isso, nosso trabalho na Secretaria do Meio Ambiente já vem sendo feito neste sentido, de coibir novas instalações nessas áreas de risco. Toda ocupação de encosta é precedida de estudo técnico. Caxias adquiriu em 2022 a Carta Geotécnica, que é um mapeamento de toda sua área urbana, que aponta áreas aptas, onde não são necessários estudos técnicos tão aprofundados, áreas que são inaptas e outras áreas que apontam a necessidade de intervenções no sentido de dar mais segurança, como muros de contenção ou determinado tipo de fundação - explica.
Diante de tal contexto, Torques ressalta que ainda não é possível ter um panorama sobre o retorno das famílias às suas antigas residências:
- (A área das encostas em Galópolis) é uma ocupação tão antiga, mas que nunca tinha tido tantos problemas. Só que as chuvas estão cada vez mais fortes, o solo está com uma capacidade pequena de suporte, o nível de ocupação está indo cada vez mais para cima das encostas. Isso tudo tem que acender um alerta de que as coisas estão mudando. Não é só em Galópolis, mas em diversas outras áreas de Caxias, áreas permeáveis sendo ocupadas, a água descendo com mais velocidade, e isso acaba impactando aqui.
ANTIGO LANIFÍCIO UNE O BAIRRO ATÉ HOJE
Além de parte das moradias estar instalada no bairro há muito tempo, Galópolis tem como característica a concentração de uma população muito identificada com o bairro que nasceu como uma vila operária na última década do século 19, com a chegada de italianos da região de Schio. Esta identificação entre comunidade e território ajuda a explicar a razão de Galópolis ser um exemplo tão positivo de preservação. Tendo como núcleo o antigo Lanifício São Pedro, atual Cootegal Tecidos, que se mantém ativa no ramo original da indústria têxtil, ao seu redor ainda persistem construções do tempo da antiga vila operária que deu origem à comunidade.
- Sempre houve entre os moradores de Galópolis a consciência de preservar sem que fosse preciso tombamentos ou uma legislação específica, e isso tem muito a ver com o momento que estamos vivendo aqui no bairro, que é de trabalhar o turismo de território. Este episódio da enchente nos deixou muito abalados, mas vejo que há uma reação muito grande no sentido de não ficar na lamentação, mas sim de reagir, de produzir ainda mais, de trabalhar por Galópolis. Vai restar um trauma considerável, pois ainda são muitas famílias ainda sem resposta sobre quando poderão voltar para suas casas, mas temos muita esperança de que isso vai passar e de que seremos todos mais cuidadosos com o meio ambiente - destaca o arquiteto Renato Solio, diretor do Instituto Hércules Galló, uma das instituições que se dedicam a manter viva a memória, e de pé o patrimônio histórico do bairro.
IMPORTÂNCIA ECONÔMICA DESDE O INÍCIO
Historiadora que teve em Galópolis o objeto de pesquisa de seu doutorado, a professora da UCS Dra. Vânia Herédia considera que a importância de Galópolis enquanto patrimônio histórico transcende Caxias do Sul e tem alcance regional. A pesquisadora ressalta ainda a característica que torna Galópolis tão peculiar, que tem a ver com o grupo específico de imigrantes italiano que foram os primeiros ocupantes deste território:
- O processo de industrialização da zona colonial foi muito rápido e tem a ver com a inserção da imigração italiana. Muitos que vieram não eram agricultores. Muitos tinham ofícios de carpinteiros, pedreiros, marceneiros, e tudo isso gerou uma mão de obra semiespecializada que foi importante para a região. Para a indústria de lã, Galópolis foi uma referência porque abasteceu o mercado nacional. No período das guerras, inclusive, abastecia o exército, com cobertas, japonas ou gabardines. Sempre teve uma função social muito importante. Faz parte desse rol de indústrias caxienses que foram referências na industrialização do próprio país.
Além do fato de ser uma das primeiras tecelagens da região a ter seu legado não apenas preservado, mas ainda vivo, diversas outras edificações que dialogam com a história da indústria têxtil ajudam a contar a história da antiga vila operária. A Igreja Nossa Senhora do Rosário de Pompéia, o antigo cinema, o Círculo Operário, a Escola Ismael Chaves Barcelos, o Prédio Cooperativa Consumo, além da Praça Duque de Caxias, entre outros, são espaços que ilustram a opinião da arquiteta Clarissa Zanatta, mentora do projeto Arquitetando Histórias, de que o patrimônio se faz também da memória afetiva das pessoas:
- Galópolis forma um conjunto arquitetônico de muito valor, além de ser o maior exemplar do patrimônio industrial de Caxias do Sul em termos de preservação. E tenho certeza que isso se dá graças à noção de pertencimento e à memória afetiva da sua comunidade, principalmente em relação ao lanifício, que tinha como uma característica desenvolver muitas atividades que envolvessem os trabalhadores e suas famílias. Se não fosse a comunidade, creio que haveria muito mais intervenções, muito mais coisas teriam se perdido.
Desde a quinta-feira (2) posterior à chuva, parte destas pessoas que constrói e é também a memória de Galópolis se uniu no Salão Paroquial do bairro para construir uma onda solidária que desde então transcende a própria necessidade que a comunidade atingida enfrenta de mantimentos em meio à crise.
- No primeiro momento nós reservamos a sala da secretaria da paróquia para receber doações, mas o volume foi tão grande que no mesmo dia tivemos que abrir o salão. Como nossa comunidade não tem uma demanda tão grande, os mantimentos estão sendo organizados e sendo enviados diariamente a municípios como Vale Real, Feliz, São Sebastião do Caí e São Leopoldo, até alguma coisa já conseguimos mandar para Porto Alegre - comenta o padre Rafael Giovanaz, que coordena os esforços humanitários junto a cerca de 200 moradores voluntários.