Na fazenda de 600 hectares que administra junto com a mãe e a irmã no distrito de Tainhas, em São Francisco de Paula, Luiz Cassiano Soprana incrementou a criação de gado, que ficava em torno de 250 reses – animais de quatro patas que servem para a alimentação humana –, para cerca de 450 cabeças. Além disso, o tempo que levava para engordar um boi até vender para o frigorífico, que ficava em torno de quatro a cinco anos, caiu pela metade, aumentando exponencialmente a produtividade da propriedade herdada do pai. A razão para isso são parcerias cada vez mais comuns entre pecuaristas e agricultores, o que permitiu uma grande diversificação nas atividades e modificou o cenário pelo interior do município dos Campos de Cima da Serra.
– A parceria com o agricultor funciona de modo que o pecuarista arrenda parte da terra para que se coloque durante oito meses a cultura dele, seja o repolho, o brócolis, a batata, a soja, o milho, e quando ele entrega a terra, a terra está corrigida, calcareada e adubada. Eu (pecuarista) não preciso gastar com adubo, com calcário, que são coisas caras, e só coloco o gado pra engordar. Tanto o pecuarista quanto o agricultor encontraram um ponto de equilíbrio em que os dois ganham dinheiro. Essa é uma particularidade de São Francisco, porque em outras regiões o próprio pecuarista já tem a sua lavoura – comenta o fazendeiro.
Preservação continua
Luiz Cassiano Soprana conduziu a reportagem em uma visita à propriedade na última semana, mostrando como é possível manter áreas de campo nativo devidamente preservadas, junto a áreas de pastagem e à lavoura por onde se espalham milhares de pés de repolho na parte arrendada, que corresponde a 20% do terreno. O modelo de parceria não é exatamente uma novidade, mas vem crescendo principalmente ao longo dos últimos 30 anos, na medida em que lavouras de batata, milho e soja passaram a fazer parte deste cenário. O Censo Agropecuário do IBGE aponta que o número de produtores rurais que ocupam as terras de São Chico mais do que dobrou de 2006, quando eram oito, para 2017, quando 19 se identificaram dentro deste modelo. Cresceu também o número de arrendatários, de 85 para 94.
– Estamos vivendo essa mudança na matriz produtiva no município há uns 30 anos, tranquilamente. Mas é algo que vem se acentuando. Com o avanço da tecnologia, houve um melhor tratamento do nosso solo, que é raso, com teores de acidez que precisam ser corrigidos para fazer uma boa agricultura. As pessoas então passaram a perceber que o nosso solo é altamente produtivo, só que ele precisa de bastante insumo. Esse insumo vem da agricultura, porque o agricultor precisa de bastante adubo, de esterco para fazer o solo ficar produtivo. E isso beneficiou também a pecuária. Porque nós não teríamos competitividade, como não tivemos ao longo da história, com a outra parte do Rio Grande, sem condições de manter a pastagem. Chegava no inverno, a gente via o fazendeiro dizer: perdi de fome tantas vacas. Com a adubação das áreas e a pastagem com maior teor nutritivo, nós passamos a ter uma situação de bem-estar animal muito positiva, e com isso o índice de mortalidade de animais diminuiu muito – explica a presidente do Sindicato Rural de São Francisco de Paula, Margarete Marques.
Entre os fatores que contribuem para a diversificação produtiva no município, que historicamente tem na pecuária a principal matriz econômica, e culturalmente também é reconhecido pela produção de pinhão e do queijo serrano, Margarete destaca a piquetização das propriedades. Com os proprietários tendo cada vez menos hectares para trabalhar, ganharam terreno ao longo das últimas décadas a silvicultura – São Francisco é o segundo município gaúcho em área de plantio de floresta, sendo o líder no cultivo de pinus – e, mais recentemente, agricultura.
Um avanço na região
– Nossa região é uma das últimas do Estado onde está acontecendo este piqueteamento. Isso significa que tivemos um avanço em outras regiões porque os municípios são mais antigos e propriedades que eram maiores já foram subdivididas num período muito anterior. Os Campos de Cima da Serra ainda têm um grande potencial de preservação, porque as grandes e médias propriedades, que ainda eram áreas de pecuária extensiva, começaram também a ser divididas entre os familiares. A quinta geração já veio numa divisão de muitas partes e as pessoas estão trabalhando com áreas menores. Isso resulta que, quanto menor a tua área, tu podes torná-la produtiva, ou vendê-la para o vizinho. Senão tu não te manténs – acrescenta Margarete.
O modelo de parceria é o famoso “ganha-ganha”. Se para o pecuarista é vantajoso pelos motivos que Luiz Cassiano já expôs acima, o agricultor também se vê atraído pela possibilidade de arrendar parte das fazendas:
– Para o agricultor, na maioria das vezes, não é vantajoso comprar a propriedade. Porque ele não pode plantar a mesma cultura todos os anos no mesmo lugar. Tem que haver uma rotação. Então é melhor ele arrendar, que assim num ano eu entrego um pedaço, no ano seguinte outro pedaço, e assim essa rotação vai acontecendo.
Mudança de mentalidade: profissionalismo e mais mulheres
Não se pode explicar a mudança de cenário do agro, setor responsável por injetar algo em torno de R$ 500 milhões na economia de São Chico (correspondendo a 49% do PIB), como o município de 21 mil habitantes é popularmente conhecido, sem levar em conta dois fatores: um é geracional e tem a ver com a sucessão familiar no campo.
– Houve um ganho enorme na qualidade educacional. Trinta anos atrás havia um único agrônomo no município, sendo que hoje temos escritórios especializados e as próprias famílias têm mais pessoas que vão buscar formação na área e aplicam esse conhecimento na respectiva propriedade – explica Margarete Marques, do Sindicato Rural.
Outro fator decisivo é o de gênero, e se explica pela presença cada vez maior das mulheres na gestão das propriedades.
Em março deste ano, um encontro organizado pela Emater na localidade de Pedra Lisa, voltado para as mulheres do agro de São Francisco de Paula, reuniu 200 pessoas. Algo provavelmente impensável, quer se pense nisso 10, 20 ou 30 anos atrás.
– Começou a ficar para trás aquela ideia patriarcal de que se tinha de que nas fazendas o homem era quem cuidava da lida do campo e a mulher cuidava da cozinha. Hoje a gente vê cada vez mais mulheres participando da geração de renda e trazendo um outro olhar muito mais atento, como uma sintonia fina. O aumento do interesse na fruticultura, por exemplo, passa por esse protagonismo maior das mulheres – comenta a coordenadora do escritório da Emater em São Francisco de Paula, Sandra de Moraes.
Sandra ressalta ainda a importância do avanço da comunicação como fator que favoreceu especialmente a agroindústria familiar, permitindo aos produtores rurais diversificar os cultivos e incrementar as vendas:
– Com a chegada da internet na zona rural, o produtor não ficou mais isolado. Quando eles vêm para a cidade já têm todos os pontos definidos, é só entregar. Também ficou mais fácil dele fazer a divulgação. Para se ter uma ideia, nós tínhamos tempos atrás uma família que produzia pêssegos sob a nossa orientação, a 130 quilômetros da sede do município. Mas quando chegava para vender na feira da cidade, o fruto já estava batido, machucado. Hoje, graças à internet, todo mundo sabe que eles produzem pêssego, e ficou muito mais fácil fazer as vendas em locais mais próximos das terras deles.
Fazenda com espírito inquieto e conhecimento técnico
Localizada a apenas quatro quilômetros da sede, a Fazenda da Cria é um bom exemplo de como espírito inquieto e o conhecimento técnico, aliado ao toque feminino, podem produzir bons resultados no campo. Vinte anos atrás, quando a agricultura em São Francisco de Paula ainda era mais restrita ao cultivo de repolho e couve nas colônias, o patriarca da família, Müller Martini, o Sadi, foi o pioneiro no município no cultivo de brócolis e o primeiro no Estado a plantar o alho-porró, vegetal que abriu caminho para a família comercializar os produtos junto à maior rede de supermercados do Estado.
Ao alho-poró somaram-se outras 11 variedades que saem dos 32 hectares da propriedade para a mesa dos gaúchos, como radite roxo, funcho e salsa crespa.
Mesmo com a estabilidade nos negócios, em 2019 a família abriu frente no plantio de ruibarbo, uma hortaliça que se dá bem com o clima frio e úmido, mas que talvez por isso seja bem menos conhecida no Brasil do que na Europa, onde é adorada. Filha de Sadi, Isaura Martini Müller conta que a família teve contato com o ruibarbo graças a uma vizinha alemã, que fazia uma torta com a iguaria e mantinha a receita em segredo. Só quando esta vizinha foi morar em um lar para idosos é que ela abriu mão do segredo e compartilhou a receita com a mãe de Isaura, Clarice.
– O mais difícil foi conseguir as sementes que se adaptassem ao solo. Fizemos tentativas de compras pela internet em que só nasceu flor, ou que nasceu brejo. Só acertamos quando encontramos as sementes por acaso em uma loja física em Porto Alegre, ainda sem saber todo o potencial do ruibarbo. Basicamente fazíamos torta e geleia, para o nosso próprio consumo – conta Isaura.
Tão logo postou as primeira fotos utilizando a hashtag #ruibarbo, Isaura começou a receber contato como o da proprietária de um famoso restaurante de São Paulo, encantada com o fato de alguém estar investindo neste cultivo no Brasil. Foi então que a família viu a oportunidade de ligar a novidade a outro antigo plano, de investir no turismo rural como uma saída para incrementar os ganhos especialmente nos meses de inverno, em que as lavouras produzem menos.
– Foi um universo que fomos descobrindo conforme plantamos. As propriedades medicinais, as possibilidades de uso como tempero. Nossa clientela principal é de chefs de cozinha do Brasil inteiro, mas já recebemos muitos aqui na fazenda que vêm para conhecer. Tem pessoas que moraram fora e que se emocionam ao encontrar o ruibarbo no Brasil – comenta Isaura.
Além da oportunidade de conhecer a lavoura de ruibarbo, atualmente com 30 mil pés plantados, os visitantes da Fazenda da cria podem usufruir de produtos como geleia, licor, cerveja e hidromel, além de experimentar a gostosa torta de ruibarbo, receita exclusiva da dona Clarice. A marca também já conta com uma linha própria de cosméticos feitos à base de ruibarbo.
A multiplicação dos pés de frutas plantados
Às margens da Rota do Sol, no distrito de Lajeado Grande, em São Francisco de Paula, uma propriedade adquirida para ser apenas uma casa de campo para uma família moradora de Caxias do Sul se tornou um rentável negócio que cresceu 1.500% em seus primeiros cinco anos. Isso porque os 10 mil pés de morangos plantados inicialmente por Altair Vaiteroski e sua esposa, Miriam dos Santos, já são 155 mil pés. E os três hectares iniciais já ultrapassam os 30, com o casal mirando o mercado de uvas e também o turismo rural.
– O morango é o nosso carro-chefe. Poderia tranquilamente ter até o dobro do que temos plantado hoje, que haveria demanda. A segurança que temos em agregar o plantio de uvas é a de que o cliente que tu fidelizas com uma fruta, ele também vai comprar de ti a outra – comenta Altair, de 44 anos.
Altair é natural de Ciríaco, enquanto Miriam é de Marau, municípios do norte do estado. Ambos moravam em Caxias do Sul, onde Altair fez carreira no setor de Recursos Humanos da Marcopolo, e Miriam como técnica de enfermagem. A migração para o interior coincidiu com a pandemia, quando o casal e os filhos Brenda, 8, e Enzo Gabriel, 10, optaram pela vida longe da cidade. Mas é claro que o senso de oportunidade também foi importante na decisão pela mudança.
– Quando começamos a plantar morango, havia mais gente começando aqui pela região. Mas muitos foram desistindo, e acho que nossa coragem foi premiada. Logo no primeiro ano, os 10 mil pés saltaram para 70 mil. E desde então só vem crescendo, sendo 60% da nossa produção vendida para fora do Estado e 40% em pontos fixos em Caxias do Sul e São Francisco de Paula. 90% dos nossos morangos são da variedade San Andreas, cuja semente é importada da Espanha, e que se adaptou muito bem ao nosso clima – destaca Altair.
Conforme o negócio dos Vaiteroski passou a prosperar, recebeu o nome de Empreendimento Farm Berry, por a fazenda trabalhar com frutos vermelhos. Isso porque, além do morango, são cultivados no terreno também mirtilo, amora, framboesa e kiwi, esse em menor escala. Além do casal, outras três famílias trabalham na colheita, todas vivendo em casas construídas na propriedade e cedidas pelo casal. Já há alguns anos, quem trafega pela Rota do Sol pode ver as placas que indicam o acesso à propriedade, que fica a cerca de 400 metros da rodovia.
E, além de degustar alguns frutos, é possível se hospedar em uma charmosa e romântica casa feita em container, que deve ser apenas a primeira num projeto que inclui a construção de outras três na propriedade.