O que dizer de um homem que passa 36 anos atrás do mesmo balcão? Tranquilo Luiz Carniel, 67, empresário e ex-proprietário do Restaurante Danúbio, fez história no tradicional ponto do bauru em Caxias do Sul, mas afirma que não está saindo de cena. O Danúbio faz parte de um capítulo encerrado, e agora vai fazer parte da história de Mateus Aguiar, conhecido como Tatu, que já atua como chapeiro no local. Tranquilo, que não é lá um cara tão sossegado assim, vai tocar o Restaurante Tranquilo, ao lado da filha Nathália. Diante da família, ele prometeu tirar o pé do acelerador, mas confidencia:
— Fizemos história, mas vamos fazer ainda mais. Eu te garanto.
Escrever sobre o Tranquilo é mais do que tecer o retrato do empresário que levou o bauru a uma nova categoria gastronômica. Depois de Guido Breda, mais conhecido como Bossa, e de Lulu Kerber, o Mestre Lula, que se dedicaram ao preparo dessa pratada de filé espalmado na chapa, com presunto, queijo derretido, tomate picado e um molho verde que tem sido aprimorado há gerações, foi Tranquilo quem popularizou e redimensionou o prato dentro da cultura caxiense. Mesmo assim, ainda é só a ponta do iceberg.
O Danúbio será sempre sinônimo de boemia. Um lugar de encontro e celebração, mas também de embates políticos e esportivos. Em tempos de pleito eleitoral, as correntes políticas inflamavam seus discursos no restaurante, que nunca deixou de ser um bar. Tranquilo nunca abriu o voto, sequer para a família. Afinal de contas, expor sua orientação política poderia inflar os oponentes e dissipar a clientela.
Por outro lado, não abrir o voto concedia a liberdade de embate a todos os lados que estavam concorrendo à prefeitura. Mas, antes de nos aprofundarmos no talento de Tranquilo em lidar com essa efervescência boêmia, transitando entre a política e o futebol, é importante descrever que lugar é esse em que toda essa história se desenrolava.
O lugar como um personagem
No dia 5 de março de 1985, Tranquilo, um tanto ansioso, abria a porta do Bar Danúbio, na esquina da Rua La Salle, com a Avenida Itália. Aos 31 anos, começava assim a sua carreira de empreendedor. Assumiu o ponto que havia sido inaugurado em 1º de novembro de 1953 pela família Fochesato. Daquela época, até entregar as chaves ao novo dono, Tranquilo manteve o espaço da mesma forma, salvo algumas reformas mais estéticas do que estruturais.
Na fachada, havia duas portas para entrar no Danúbio. Geralmente, a porta da esquina servia para quem estava interessado em sentar-se no balcão – inclusive havia quem gostasse de ficar na janela, que dá para a Rua La Salle. Enquanto que a segunda porta, mais à frente, pela Avenida Itália, era utilizada por quem desejava sentar-se à mesa. No andar de baixo, havia um espaço mais reservado, em que era possível fugir da muvuca à beira do balcão. A descida dos clientes tinha de ser calculada, porque era usada também pelos garçons que, ágeis, transitavam equilibrando pratos, copos e garrafas.
A cozinha ficava ao lado do salão do subsolo. E, ao final do corredor, depois da cozinha, ficavam os banheiros. Em uma das paredes, à esquerda, ao fundo do salão, havia um papel de parede daqueles que simulavam um bosque. Aquela cena bucólica era como uma tentativa de estabelecer ali, ao contrário da parte de cima, um ambiente de sossego. Porque, no primeiro andar, os convivas conversavam alto, tentando sempre sobrepor-se ao tom de voz uns dos outros — e da televisão —, principalmente em dias de jogos de futebol, quando o balcão e as mesas viravam camarotes, mas sem a tradicional divisão das torcidas.
Papos e grenás sentados lado a lado, entre deboches e tragos de vinho, cerveja e limãozinho com Underberg, desafiavam as regras de boa convivência, mas sem violência. Tudo em nome da alegria ou gozação, dependendo do placar. E assim, também ocorria quando o assunto era política. Correligionários e simpatizantes de todas as correntes sentavam-se no mesmo balcão, sob o mesmo teto, sempre com o olhar à espreita de Tranquilo.
—As pessoas gostam de conversar com ele, porque como gosta de ler, sempre tem assunto para tudo. E outra qualidade do Tranquilo, é que ele sempre sabe a hora certa de pôr panos quentes... — revela a esposa e confidente Maria Teresa Belo da Silva, 62. Eles estão casados há 35 anos.
O primeiro bauru da vida
Em 1970, Tranquilo pisava em Caxias para fincar suas raízes.
— Vim de Garibaldi com 16 anos para trabalhar no Restaurante Bauru, que ficava na entrada da Luiz Michielon, no Cruzeiro. Foi ali que aprendi um pouco sobre isso tudo. Naquela época, só tinham dois restaurantes a la carte em Caxias, o Bauru e o Querência — recorda Tranquilo.
Mas, além de provar do filé na chapa, montado com presunto e queijo derretido, adornado com tomate picado, o jovem assumiria um posto de trabalho em que, 51 anos depois, continua servido de inspiração a muita gente. Tranquilo, desde a adolescência, aprendeu a comandar o balcão do bar. Porque mesmo em restaurantes, desde antigamente em Caxias sempre havia um balcão para se tomar um aperitivo. E, mais do que servir bebidas, Tranquilo confidencia:
— Lá eu aprendi a lidar com o povo.
Como em toda história, há sempre mais de um ponto de vista. Por isso, enquanto Tranquilo explicava como se deu o início de sua jornada pelo maravilhoso mundo da gastronomia, a filha Fernanda, 33 anos (que tem uma loja de roupas para crianças também na Avenida Itália), agitando-se na cadeira, como se quisesse interromper o relato do pai, respirou fundo e, depois que ele concluiu, revelou:
— A mãe dele tinha restaurante! — diz, abismada.
Fernanda, continua:
— Eu gosto de estar junto nessas ocasiões, porque meu pai nunca conta que a minha avó (Edi Ferri Carniel) tinha restaurante. Ele cresceu num restaurante, mas esquece de dizer — frisa.
— Sim, tá certo, eu cresci num restaurante... — desconversa Tranquilo.
Paira no ar um sentimento de que, por mais que ele tivesse nascido em um ambiente desses, foi a sua trajetória individual, de erros e acertos, que o conduziu a ser uma espécie de guardião e promotor do bauru, de Caxias para o mundo.
Desvendando o gosto do cliente
Mesmo antes da pandemia, nesses tempos modernos de bytes e terabytes, de vida digital engolindo nossa vida de verdade, a dita "vida como ela é", como nos ensina Nelson Rodrigues, o mercado da gastronomia tem se projetado por meio de um novo caminho. E também estranho, porque virou impessoal. Desliza-se o dedo na tela do telefone celular, clica-se em algum desses aplicativos pra pedir comida. Escolhe-se e um tempo depois a comida está em casa. Desse jeito, sacia-se a fome, mas perde-se o discreto charme do atendimento.
— Ninguém me ensinou a ser assim. Mas eu aprendi a ter afinidade e conhecer os meus clientes. Muitos deles, eu sei até onde gostam de sentar. Sei também do que eles gostam de comer e até o ponto do filé — explica Tranquilo.
O empresário diz ainda que o caxiense é um exigente que, antes de mais nada, gosta de ser bem atendido e comer bem.
— Nosso cliente quer coisa boa. O atendimento é primordial. Ele quer ser agradado. Claro, tem de atender ele bem e, ao mesmo tempo, não adianta só agradar, se tu não levar um prato que ele fique satisfeito. E a despedida também. Não é simplesmente pagar e dizer "tchau" e ele vai-se embora. Tem de agradecer que ele veio aqui — ensina.
Fernanda não se contém, e antes mesmo de descrever uma cena que reforça esse jeito do pai de tratar os clientes, ela cai na gargalhada.
— Um dia, um cliente liga. Eu atendo e ele me pergunta: "Cadê o teu pai?". "Ele não está trabalhando hoje", respondi. "Mas é que teu pai sabe o que eu como". Eu insisti com ele e disse: "Tá, mas pode me dizer o que é que o senhor come, que eu faço o pedido". E ele me respondeu: "Mas eu não sei o nome". O cliente não sabe o nome do prato que ele come, porque o pai está acostumado a fazer o pedido dele. Meu pai sabe até qual cliente não gosta de ervilha — conta Fernanda.
Relação familiar construída junto ao balcão
A filha caçula Nathália, com 30 anos, está a frente do Restaurante Tranquilo, desde 2015. E agora, que o pai não vai mais ficar atrás do balcão do Danúbio, resolveu que vai ajudá-la a tocar o negócio. Mas a verdade é que Tranquilo sempre esteve atrás dos dois balcões e a proximidade dos estabelecimentos ajudava nisso.
— Desde muito nova trabalho com meu pai, então tudo que eu sei aprendi olhando ele fazer. Meu pai nunca foi muito de ensinar, ele sempre falou que eu tinha de aprender olhando e, assim, depois de momentos nada tranquilos, fui aprendendo e me espelhando nele — admite Nathália.
Depois de ouvir esse depoimento, veio a convicção de que o título dessa reportagem parece mesmo fazer sentido. Porque, mais do que um trocadilho, revela uma faceta desse senhor inquieto, que deseja estar sempre a um passo à frente do cliente.
— Trabalhar com ele não é toda essa tranquilidade. A gente tem de pensar no que ele está pensando e tentar acompanhar, porque ele não fala muito e apenas vai fazendo. E, se tu ficar parada esperando ele mandar, tu não vai fazer nada e ainda vai ouvir ele brigar contigo. Como ele está sempre à frente tive de aprender a andar junto, se não acabo ficando para trás — desabafa.
Enquanto releio o relato da Nathy, que é como a família a chama, acesso o baú de memórias e me vejo sentado no primeiro banco, à direita do balcão, junto à caixa registradora. Eu devia ter uns 12 ou 13 anos. Nessa cena, vejo o Tranquilo, atento às mãos levantadas e acenando com a cabeça para que o garçom os atendesse. Ao mesmo tempo, registrava mais uma cerveja em outra mesa e acenava positivamente ao pedido de um cliente que batia no balcão fazendo sinal de que gostaria de tomar um limãozinho. E, antes que eu terminasse de abrir o chiclete que ele me deu, depois de dar um peteleco na minha cabeça, já estava na ponta extrema do balcão, confirmando com outro garçom, para qual mesa deveria levar o bauru.
Volto do transe e a Fernanda conta outra das suas memórias, que revelam como a relação com o pai foi construída junto ao balcão do Danúbio, e não em casa.
— Para ver o meu pai, a gente tinha de ir no Danúbio. Um assunto familiar nunca dava para conversar em casa. Por exemplo, se eu queria ir a uma festa, eu tinha de ir lá conversar com ele. Aí sempre tinha os clientes, que ficavam “corneteando” o pai e queriam decidir por ele: “Quer sair Fernanda? Quanto tu precisa, vai ali no caixa e pega” — diverte-se contando.
Afinal de contas, Tranquilo é papo ou grená?
O Danúbio sempre foi palco de todas as plateias. Nas mesas foram decididas eleições municipais, negócios foram acordados, casamentos selados e amizades celebradas. Da mesma forma, derrotas foram assimiladas junto ao balcão, afogadas em um copo com o afago do amigo Tranquilo, que diz ter se despedido de tantos que sentavam-se naqueles bancos porque já morreram.
No dia em que o empresário me concedeu a entrevista (5 de abril), sentado junto às mesas do garden do Restaurante Tranquilo, estava marcado o Ca-Ju, que terminaria em 0 a 0. Mas dizem que o Caxias jogou melhor.
— Bah! Deu muita ronha ali no Danúbio por causa do Juventude e do Caxias. Quando perguntavam eu sempre dizia, para os grenás, “sou do Caxias” e, para os papos, “sou do Juventude”. Nunca abri o jogo. Aí, em 2006, a Fernanda vira a rainha do Juventude... Bah, os caras do Caxias queriam me matar — conta Tranquilo.
— Mas no fundo, ele é do Caxias — entrega Fernanda.
— Pois é, agora todo mundo já sabe... — conforma-se Tranquilo.
— Mas, pensa só, eu tinha de ir no Alfredo Jaconi com a Fernanda para ver os jogos. Num dia, me fizeram entrar no jogo do Juventude, pela Copa do Brasil, vestindo uma camiseta de treino do alviverde. Rapaz, os caras tiraram umas fotos e antes de eu chegar em casa, já estavam com as fotos na mão, me ligando e enchendo o saco.
— Ainda bem que não tinha Instagram — brinca Fernanda.
Já que Tranquilo abriu o jogo quanto ao seu time do coração, não custa perguntar sobre sua posição política:
— Ah, quando o assunto é política a gente nunca sabe em quem ele vai votar — afirma Fernanda.
O bauru que decidiu quatro eleições
Tranquilo não confirma sua orientação política, mas há especulações. O fato é que ele jura que o seu bauru tem um tempero tão especial que já decidiu quatro eleições municipais.
— Principalmente durante os pleitos, sempre tinha uma muvuca ali no Danúbio. Todas as correntes se encontravam. Mas eu sempre disse: “O candidato que fizer a última refeição aqui, antes do pleito, ganha a eleição”. E, realmente, em quatro eleições foi assim. Primeiro foi o Mansueto Serafini Filho (1989-1992), depois o Pepe Vargas (1997-2001), e o José Ivo Sartori, por duas vezes (2005-2012) — confirma.
Tranquilo prossegue o relato:
— Eu lembro que o Mansueto veio sozinho, um dia antes da eleição (1988). Sentou num canto, comeu um bauru e, no outro dia, ganhou a eleição — sentencia.
Tranquilo confirma que alguns clientes até apostavam qual candidato venceria. Na eleição citada pelo empresário, em que Pepe venceu seu primo, Germano Rigotto, ocorreu um fato curioso e embaraçoso.
— Uma noite, por volta das 19h, vinha a comitiva do Rigotto, candidato a prefeito, na eleição em que ele perdeu para o Pepe. Estavam a Nathália e a Fernanda, ainda pequenas, na porta, e vinha o Rigotto com aquele coraçãozinho. Ele se aproximou, cumprimentou as crianças e chegou para a Nathália e perguntou: “Tu sabe quem eu sou?”. “Sei, sim”, ela respondeu. “Mas minha mãe não vai votar em ti, ela vota no Pepe!” — relata Tranquilo.
Antes que eu perguntasse como acabou essa história, ele prosseguiu:
— O Rigotto entrou, veio no balcão e perguntou para mim: “De quem é aquela criança?”. Eu respondi: “É minha.” “E não sei de nada, nem sei em quem vai votar a minha esposa” — conta Tranquilo, que naquela altura não queria comprometer-se.
O fato é que Pepe venceu, porque foi comer bauru um dia antes, acredita Tranquilo.
Chapa quente
Nada parece abalar o inquieto Tranquilo. Nem mesmo as saídas de chapeiros que ajudaram a reconstruir a história do bauru ao longo desses anos. Tem carinho especial por todos que passaram por ali, como Nilço Antonio Silva, que saiu do Danúbio em 2014, justamente no ano em que Tranquilo descobriu um câncer na garganta.
— Nós ficamos preocupadas, porque o pai estava no hospital, em tratamento, quando o Nilço, que era chapeiro há 25 anos, quis sair. Mas o meu pai só dizia que era o melhor para ele — conta Fernanda, reforçando que o pai não guarda remorso de nada, nem ninguém.
O tratamento foi realizado em São Paulo. De tempos em tempos, quando voltava para Caxias, orientava o novo chapeiro do Danúbio e dava pitacos na obra do Restaurante Tranquilo, que nascia tijolo por tijolo enquanto ele lutava contra o câncer.
— Tudo que tem aqui foi ideia minha, viu — conta, orgulhoso.
— Pouco modesto – brinca Fernanda.
— Ele ficava em São Paulo, com a cabeça aqui na obra e no Danúbio — revela a esposa.
Tranquilo superou o câncer, que deixou apenas a aparência de uma voz cansada. Mas é só no timbre, porque o fôlego é de um leão que ruge à espreita de um novo desafio.
A vida é um sopro
A pandemia acelerou uma decisão. Não dava mais para sustentar dois restaurantes com um só coração, e cujas receitas diminuíram, no pior da crise, em 80%. A oportunidade lhe bateu à porta e entregou as chaves da joia que lapidou por 36 anos. Agora, seus olhos estão no Restaurante Tranquilo e na família.
— Quero me dedicar à melhor parte, quero chegar aqui entre às 10h30min e 11h e bater papo com meus clientes. Vou tirar o pé do acelerador — diz.
Aos 67 anos, convicto do seu legado, quer continuar a fazer história, porque ainda deseja aprimorar o famoso bauru.
— Tem um prato que anda vendendo muito que é o filé Gratinado. É um filé feito à milanesa, e depois vai uma camada de queijo, molho de tomate, e mais uma camada de três queijos, aí coloca um azeite e orégano e põe no forno para gratinar. É uma loucura de bom — descreve.
Antes de encerrar a entrevista, digo que tenho ainda duas perguntas para fazer.
— Além da perspectiva de focar mais em um negócio do que dividir despesas com dois restaurantes, o quanto pesa na sua decisão o fato de sua filha estar grávida do seu primeiro neto?
— Bah, esse vai me tirar muito tempo. Ele vai me fazer trabalhar um pouquinho a menos. Vou me dedicar a ele — confessa, com um olhar de ternura.
Até o fechamento desta edição (11/4), Lucca ainda não havia nascido. E para encerrar a entrevista:
— Tranquilo, de onde o senhor tira tanta energia e vitalidade para continuar a fazer história?
— Olha, Marcelo... Para dar certo tu tem de gostar do que faz. Se não, tu não tem energia para nada. E eu adoro fazer o meu trabalho. Eu nem vejo a hora passar. Pensa comigo: eu me dedicava 16 horas por dia, tá louco! Tem de gostar muito do que se faz — finaliza.
A vida é um sopro. Se o teu neto tiver o teu olhar, a mesma luz que cativa a tantos que te cercam, o mesmo coração amoroso e dedicado, a trajetória dele será vitoriosa como a sua.
Um brinde à vida.