“O fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo, assim como se trocam as mercadorias por ouro e ouro por mercadorias”. O aforismo é do filósofo Heráclito de Éfeso (540 a.C. a 470 a.C.). No curso da história, não há muitas informações sobre vida e obra de Heráclito, por vezes tratado como um homem obscuro e misterioso. Contudo, utilizou-se da metáfora do fogo para explicar sua cosmovisão.
Curioso perceber que o fogo, elemento simbólico que atravessa gerações, e que foi importante para contribuir na sobrevivência da espécie humana, traz também em si mesmo diferentes nuances que marcam povos e culturas diversos. Ao mesmo tempo em que as labaredas contribuem para enfrentar situações elementares da vida, como aquecer no rigor do inverno, tema desta reportagem da série De Manta e Cuia, o fogo também suscita reflexões filosóficas.
— Os primeiros filósofos são chamados de “filósofos da natureza”, pois buscavam a explicação para o surgimento de tudo que há. Cada um deles escolhia um elemento, Heráclito escolheu o fogo. Ele atribuía ao fogo o princípio gerador de tudo, o “arché”. Porque o fogo é mutável, a chama nunca é a mesma, se modifica com o tempo. E tudo que o fogo toca, ele modifica. Então, quando ele diz que “o fogo se transforma em todas as coisas” o filósofo está remetendo a essa ideia de princípio. E que o fogo gera vida — analisa Laina Brambatti, mestre em Filosofia/Ética pela UCS e diretora pedagógica da Cataventura.
Na visão de Heráclito, complementa Laina, o ser humano está o tempo todo em transformação:
— O fogo só aquece se há frio. O fogo só ilumina porque há escuridão. Ao mesmo tempo que ele queima, ele acende e transforma. O fogo produz o fim das coisas, a inexistência. O fogo é usado por Heráclito como um elemento de metáfora da própria realidade, que é assim como o fogo. A realidade se apresenta num constante devir, uma mudança constante de inícios e fins.
Apesar da intensidade, das chamas que abrasam e trazem aconchego, o fogo consome até virar cinza. Enquanto houver brasa ardente o fogo vai emprestar seu calor para aquecer ou até para cozinhar alimentos. Acompanhe a seguir, a história de três moradores da Serra que revelam como o fogo faz parte do seu cotidiano, com um certo charme nesse período do ano em que as baixas temperaturas são um convite para ver a lenha estalar, mas também em como a brasa arde nas demais épocas do ano e em como essa chama ressignifica suas vidas.
Simbologia do fogo para o escotismo
Pode uma fogueira mudar o jeito de ver e encarar a vida? A estrategista digital caxiense Patrícia Janczak tem certeza que sim. A fogueira a que ela se refere é o Fogo de Conselho. É uma cerimônia realizada pelo movimento escoteiro, geralmente à noite, em que os integrantes promovem a apresentação de esquetes teatrais ou musicais e também compartilham de ensinamentos que pretendem forjar o caráter de crianças e jovens.
— É legal essa simbologia do fogo, porque quando ele queima deixa como sinal de sua passagem um rastro de cinza e destruição. Só que, ao mesmo tempo, o fogo aquece a vida. Vamos pegar uma passagem bíblica, por exemplo. Tem a simbologia da Sarça Ardente. As labaredas queimavam, mas não consumiam a sarça e de lá saiu a voz de Deus para ordenar a Moisés a libertação do povo hebreu. Então, através do fogo também tem a purificação. No fogo, por exemplo, o ferro se liberta da ferrugem — explica Patrícia, que comemorou recentemente 30 anos desde o dia em que fez a sua promessa, marco inicial da caminhada no escotismo.
Enquanto conta momentos importantes e marcantes dessa trajetória, Patrícia se utiliza também da linguagem metafórica para revelar como o fogo abrasa sua vida.
— Diante do fogo simbólico, que crepita e arde no Fogo de Conselho, a gente tem um mundo de emoções, sentimentos, desejos, elevação da nossa alma, e aperfeiçoamento do caráter. Então, quando a gente olha para a fogueira aquecemos o nosso coração. O fogo é muito representativo, tem esse caráter místico, porque estamos no escuro, e a única luz que ilumina a cerimônia do Fogo de Conselho é a fogueira. Isso cria em nosso inconsciente a memória de muitas coisas positivas — avalia.
Essa caráter místico, a que se refere Patrícia, é ressignificado de outra forma na Semana da Pátria. Ela explica que antes da abertura oficial ocorre um Fogo de Conselho com a participação de todos os grupos do movimento escoteiro da cidade.
— A chama que acende a pira da Semana da Pátria vem da fogueira do Fogo de Conselho. Olha que lindo isso! A cidade toda é marcada com a chama desse fogo. Isso é muito simbólico. O fogo tem a simbologia de aquecer e de iluminar, mas também de arder. Arder aquilo que é importante para cada um de nós. E dentro do movimento escoteiro, temos como importante Deus, a pátria e o próximo, tudo isso ao redor do fogo e ardendo dentro dos nossos corações.
Canção da espedida
A seguir, trecho da canção que encerra a cerimônia do Fogo de Conselho, realizada por grupos de escoteiros.
Não é mais que um até logo
Não é mais que um breve adeus
Bem cedo junto ao fogo
Tornaremos a nos ver
Com nossas mãos entrelaçadas
Ao redor do calor
Formemos esta noite
Um círculo de amor
Herança culinária sob o fogo
No Vale dos Vinhedos, em meio aos parreirais, vinícolas e restaurantes, que em sua maioria servem versões do tradicional galeto e polenta, tem um espaço aconchegante e que resgata a culinária do pampa, feita no fogo. O Restaurante Guri, inaugurado há cinco anos, foi eleito um dos cem melhores restaurantes do Brasil pela Revista Exame 2023.
O chef e proprietário é o Enio Valli, que veio de Pelotas, trazendo na bagagem não apenas o tempero, mas também uma relação afetiva da força e potência da brasa ardente.
— O que é a gastronomia gaúcha? Passei a estudar sobre o assunto, apensar da literatura escassa. Mas estudando eu percebi que tudo se resume ao fogo — enfatiza.
E complementa:
— Comecei a me dar conta que o fogo sempre esteve presente na nossa cultura. Porque seja inverno ou verão, o fogão à lenha estava sempre acesso. Atualmente, perdemos um pouco disso. Mas sempre tinha o fogo acesso e uma panela em cima do fogão com uma chaleira. Aí deu o estalo: a brasa e o fogo é o que une e dá identidade à nossa gastronomia.
Valli reconhece que sua identidade cultural é mais vinculada aos hermanos do que ao Brasil para turista ver.
— Como é que a nona, ou como se diz lá no Sul, a abuela, fazia uma bolacha? A nona fazia a massa de um dia para o outro, acordava cedo e fazia fogo no forno à lenha e colocava para assar. Então, uma sobremesa que fazemos aqui tem a galleta, que é como se diz o nome dessa bolacha em espanhol. Fazemos tudo na brasa, desde a primeira entrada do menu até a sobremesa — explica o chef.
No documentário Expedição Guri (disponível no YouTube), Valli se refere às nuances do fogo, que nunca se comporta da mesma forma, está em constante transformação, como diz Heráclito, lembra? Para reafirmar essa instabilidade o chef diz: “Estamos sempre em busca da imperfeita perfeição”. Filosófico, não?
— A gastronomia de fogo é isso. Ela não permite que tu sejas acelerado, tens de respeitar o tempo das coisas.
No Restaurante Guri, tudo começa pelo fogo, que é acendido cerca de duas a três horas antes de começar o trabalho. Já é uma demonstração de respeito ao tempo que a lenha precisa para ficar em brasa incandescente.
— Eu acho que a gastronomia gaúcha pode ter vários ingredientes, pode ter várias influências de vários lugares, porque temos o português, o espanhol, o indígena, os hermanos, os italianos, os alemães, os libaneses, os japoneses e por aí vai. Todos eles colocaram uma pitada de tempero na nossa gastronomia. Mas a brasa tem de estar presente — completa Valli.
Ancestralidade kaingang
O cacique kaingang Maurício Ven-tãin Salvador, da Aldeia Konhún Mag, na Floresta Nacional de Canela, não é leitor de Heráclito. Ele interpreta a vida por meio do que dizem os espíritos. Aliás, para a cultura kaingang, o fogo é um desses espíritos que apontam os caminhos.
— O fogo vem junto com a cultura do povo kaingang desde sempre. O fogo nos acompanha desde as coisas mais básicas, no preparo dos alimentos ou até para nos aquecer. E também tem uma outra importância do que acontece ao redor da fogueira, de conversas que temos com nossos irmãos — explica.
As conversas citadas pelo cacique podem ser triviais, para celebração ou até para ampliar o conhecimento dos membros da aldeia. Contudo, uma das simbologias mais presentes está ligada aos ritualismo ancestral.
— O fogo é importante também para fazer a queima das nossas ervas medicinais. Mais para a questão espiritual mesmo e fazemos essa queima numa fogueira que tem de ser específica para isso. Além de fazer parte de muitos rituais, para nós, o fogo também é um ser espiritual. Um dos rituais da nossa cultura é o kiki. São três fogos nesse ritual, fala dos costumes kaingangs e explica de onde saem as regras e orientações da nossa cultura kaingang ao nosso povo — revela o cacique.
O pensamento filosófico de Heráclito, com um certo acento poético, “o fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo”, atravessou cada um dos personagens abordados nessa reportagem.
Quer seja por meio da revelação de uma transformação interior ou até mesmo de ingredientes culinários, o fogo extrapola todos os limites e transcende as estações. É símbolo do inverno, sugere aconchego e acalenta a estação mais fria do ano, mas também aproxima culturas diversas ao redor da fogueira.