Há quem compreenda que a quietude e o silêncio são as condições ideais para quem precisa tomar decisões mais assertivas. Mas há um contrassenso nessa sentença, nesse mundo contemporâneo de múltiplas vozes e discursos, na disputa por quem defende melhor seu argumento, quase sempre baseado em experiências particulares e em defesa do interesse de seus pares. Esse ambiente quieto e silencioso, não apenas no exterior, mas, sobretudo, em nosso interior, é a condição ideal, segundo a visão dos indígenas, para que a sabedoria se sobreponha ao individualismo e, de fato, as melhores decisões sejam tomadas. Pelo bem comum.
Há cerca de 80 quilômetros, partindo de Caxias do Sul, se localiza a Floresta Nacional de Canela (Flona). Esse é um reduto de preservação aprovado em decreto federal desde 19 de dezembro de 1967. No entanto, para o povo kaingang, é o território de origem de seus ancestrais, séculos antes das navegações portuguesas e espanholas circundarem e colonizarem essa parte do hemisfério da Terra. Tramita em Brasília o reconhecimento desse território e a delimitação da terra para que os kaingangs se estabeleçam em seu local de origem, onde pisaram e ainda pisam, em espírito, seus ancestrais.
É nesse território, entendem os kaingangs, que devem ser cultivados não apenas os frutos que vão alimentar seus corpos, mas também as sementes que vão alimentar a vida espiritual desse povo. Vida que depende, primeiramente, de que os territórios indígenas não sejam degradados, corrompidos ou destruídos. Pelo bem comum, que a eles seja concedido o direito de não apenas preservar o território, mas permanecer cultivando hábitos, tradições, costumes, ritos e espiritualidade, para que a nova geração colha frutos de bonança e não de desespero, como têm alertado recentemente os líderes indígenas Brasil afora.
Esse meu sobrinho nasceu muito abençoado por fazer parte de uma linhagem de lideranças.
MAURÍCIO VEN-TÃIN
cacique da aldeia Kónhun Mág
O movimento de retomada dos territórios é a primeira etapa para que os atuais líderes preparem as novas gerações de indígenas a fim de que estes possam herdar o melhor desta terra. Dentro da Flona de Canela, na terra dos caingangues, o recente nascimento de um menino amplifica a reflexão para além das metáforas de semeadura que dela suscitam. Liam Yagtyg nasceu em 10 de março.
Ele carrega o nome de seu avô Zílio Yagtyg, cacique falecido em 2017, que teve a revelação através dos espíritos de que a terra de seus antepassados estava à sombra de uma grande araucária, na região de Canela.
— Esse meu sobrinho nasceu muito abençoado por fazer parte de uma linhagem de lideranças. Por andar com a gente, vamos poder ensinar a ele qual era o pensamento do avô e o que ele fez para estarmos aqui, hoje. E vamos repassar isso para ele, para quando ele for adulto possa repassar o mesmo conhecimento para as outras gerações. É como uma semente — ensina o atual cacique, Maurício Ven-tãin Salvador, 28 anos, que herdou a autoridade de seu pai Yagtyg.
Apesar de jovem, Maurício diz que sua sabedoria vem da proximidade com os mais velhos, que atualmente o respeitam como líder, porque ele tem se dedicado a aprender e ensinar sobre a importância de plantar e cuidar das boas sementes que os espíritos têm colocado em suas mãos.
— O que resume, basicamente, a nossa comunidade é a visão que tenho dos próximos 50, 60, 70 anos. É um preparo que fazemos hoje para que as crianças cheguem lá com esse conhecimento de que só estamos aqui a base de muita luta. Por isso, esse conhecimento vai sendo passado de geração em geração. Esse pensamento do coletivo, do bom pensamento, de um ajudando o outro, de nunca querer mal ao outro e que servirá de exemplo para as demais comunidades. Eu quero que eles se perguntem de onde vêm a nossa força e que eles saibam que é a força dos nossos ancestrais.
A floresta é uma escola
Mais do que um lar, mais do que o lugar onde habitam os espíritos, a floresta é uma escola. Tudo o que um indígena precisa aprender sobre vida e morte, doença e cura, enfim, sobre as revelações do porvir, está para ser desvelado floresta adentro.
— A gente faz saídas de campo para dentro da mata com as crianças. Elas são muito curiosas. Para não assustar muito elas, nós explicamos que os espíritos não estão aqui para judiar de nós, mas para nos ajudar em tudo o que precisamos. Nossas crianças já vêm tendo esse conhecimento desde cedo — revela o cacique Maurício Ven-tãin Salvador.
Entre os planos da aldeia, que estão sendo desenvolvidos mesmo antes da demarcação oficial do território, está a implantação de uma escola bilíngue.
— Nossos filhos não vão ter só aula dentro de uma sala. Eles vão ter aulas dentro da floresta também — projeta Márcio Kakupry Salvador, irmão do cacique e pai do recém-nascido Liam Yagtyg.
A ideia de uma escola bilíngue na aldeia atende ao objetivo de preservação de sua linguagem, hábitos, aspectos culturais e espirituais, mas também para que seja revista a historiografia.
— Na escola não-indígena, as nossas crianças trazem muitas dúvidas, perguntam quem foi Pedro Álvares Cabral, por exemplo. Explicamos que foi um homem que chegou aqui, pediu moradia e nós cedemos moradia para ele. Também perguntam porque as professoras ensinam que Cabral descobriu o Brasil. E temos de dizer que essa é uma forma diferente de explicar o que realmente aconteceu — justifica o cacique.
Em nome do bem comum
Atualmente, segundo o cacique, há nove famílias vivendo na aldeia Konhún Mág, em Canela. Em 2018, na segunda fase de retomada do território, cerca de 30 famílias caingangue subiram da Reserva Indígena Nonoai para a ocupação.
— Na época, chegamos bem no inverno e como tinham muitos idosos e crianças, preferi que eles voltassem para Nonoai. Como esse ano deu um sinal positivo em Brasília, que, esperamos, em breve, vão dizer qual vai ser a delimitação do território, então, aos poucos, essas famílias vão retornar — explica o cacique.
Maurício Ven-tãin está seguro de que o território lhes será concedido em um papel oficial, assinado por uma autoridade de Brasília, porque ele já recebeu a confirmação por meio dos espíritos da floresta. Por isso, diz que não precisa mais lutar pela terra. Ele afirma que seus ancestrais, que habitam na floresta, estão cuidando de tudo. No momento, ele precisa se preocupar em fortalecer os jovens e as crianças, para o futuro baseado em seus princípios.
— Nós ensinamos nossos filhos sobre o valor do coletivismo. De um ajudar o outro. Porque cada um tem seus talentos. Nós percebemos que, quando nossos filhos vão estudar numa escola não-indígena, fora da aldeia, o ensinamento que é colocado para eles é que devem ser os melhores, para conquistar o melhor cargo, o melhor emprego, a melhor função. Mas esse é o ensino de um não-indígena — observa o cacique, que complementa:
— O nosso ensino, que passamos para as nossas crianças, é que elas aprendam a fazer a cestaria, as comidas típicas. Para que ajudem e respeitem e escutem os mais velhos, para que tirem lições deles, porque vem deles a sabedoria.
Gerações que estão por vir
Assim como seu pai fazia, o cacique Maurício busca conselhos ao pé de uma grande araucária. Ele entende que essa conexão com o que os não-indígenas chamam apenas de natureza, mas para eles são os espíritos, é vital para buscar novos conhecimentos e guiar os caminhos futuros.
No documentário Konhún Mág - O Caminho da Volta à Floresta de Canela, projeto selecionado no edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, da Sedac e Fundação Marcopolo, o cacique Maurício traz à tona, mais uma vez por metáforas, a missão que seu pai lhe transmitiu, e que está sendo semeada no coração das crianças da aldeia, como o pequeno Liam, que carrega o nome do avô com símbolo desse legado.
— Eu acho que todas as famílias aqui lutam por um mesmo objetivo, que é a nossa terra. Porque sem terra não tem vida, não tem saúde. Sem a terra não temos identidade e não somos reconhecidos como povos indígenas. Então, para que isso não se perca, a gente vem seguindo nesse projeto de vivência da raiz, para fazer ela brotar e dar frutos para colhermos lá na frente que são as gerações que estão por vir.