Pisar os pés em um lanifício, percorrendo os corredores abarrotados de máquinas, que recebem a lã de ovelha natural, transformando-a processo depois de processo, em metros e metros de tecido, seja natural ou tingido, tramado em texturas, cores e formas distintas, é como entrar em um portal do tempo.
É um outro tempo, difícil até de explicar. É como voltar a linha narrativa da história, não tão remoto como a pré-história, nem tão perto dos tempos modernos, como no início da industrialização. Contudo, apesar de sinalizar o passado, entrar num lanifício é conectar-se com um tempo que nos conduz à contemporaneidade. Tudo isso num piscar de olhos, por meio de um elemento: a lã de ovelha. A lã tem o poder simbólico de nos remeter ao mais remoto dos tempos e, quem sabe, carregar em si a natureza como antídoto para um mundo cada vez mais artificial.
A lã desde os primórdios tem sido utilizada por homens e mulheres, envolvendo seus corpos para se aquecerem, aplacando dias e noites frias. Em Caxias do Sul, ainda há um lanifício, numa mesma região da cidade que já foi um polo industrial, Galópolis. Criada em 7 de junho de 1999, a Cooperativa Têxtil Galópolis Ltda. (Cootegal) carrega um legado que remonta a 1894, na fundação da Societá Tevere e Novitá. Essa sim, a primeira cooperativa têxtil de Caxias.
— Eu gosto daqui porque tem um significado muito maior do que simplesmente fazer o tecido. Aqui a gente tem toda a herança cultural que eles preservam. Tem todo um material guardado, que mostra como eram produzidos os tecidos nos anos 1940, por exemplo. E tecidos, que aliás, são atuais ainda hoje, porque constatamos isso observando as padronagens. O xadrez é um clássico da Cootegal. Ou ainda o tweed (tecido com lã de fio grosso na composição, como base do material), que já era produzidos aqui no lanifício no passado — explica Beth Venzon, professora e pesquisadora de moda.
A partir desse olhar da Beth para a lã, referenciando memórias e afetos, por meio de suas tramas, costuras e múltiplas camadas, transitando entre o passado e o presente, é que essa reportagem foi se construindo. Beth defende que a lã é, sim, um símbolo do inverno rigoroso da Serra gaúcha, mas é também um elemento de ternura, que nos reconecta às memórias no ato de cobrirmos nossos corpos com um casaco feito a mão, pela avó. Mas também tem a força e a potência de lançar bases para que a lã transite pela contemporaneidade adentro.
História e pioneirismo
Sidnei Canutto, diretor da Cootegal, é um dos 14 sócios da cooperativa. A lã que eles utilizam no lanifício vem da região da fronteira, de municípios no entorno de Bagé. A Cootegal herdou o pioneirismo de uma atividade lá do final do século 19 para posicionar-se, atualmente, como o único lanifício do Brasil, em que a matéria-prima é a lã natural.
— Antigamente deviam ter uns 10 lanifícios no Rio Grande do Sul. A produção e o consumo da lã era enorme. Hoje, os produtores preferem produzir ovelhas para o corte, do que propriamente para a lã. A lã da ovelha é o seguinte: tu tosa a ovelha nesse ano, no ano que vem ela vai te dar mais lã. E assim, sucessivamente. Quer produto mais sustentável do que esse? Não tem — defende Canutto, durante uma visita ao lanifício nesta semana.
A Cootegal produz tecidos de lã e mistos para vestuário, decoração, calçados e corporativo, além de cobertores, mantas, cachecóis, fios para artesanato e malharia.
— Eu te diria que 70% do nosso produto é comercializado em Caxias e região e o restante no mercado de São Paulo. E geralmente, o que mais vendemos, cerca de 80%, são as cores da cartela (tendências), e o restante são os tecidos trabalhados, porque nem todo mundo quer apostar num xadrez, por exemplo. Um tecido em lã, como o nosso, pode chega a custar R$ 60 a R$ 70, o metro.
Na seção de estoque não haviam mais peças da coleção deste ano. Mas o espaço começa a ganhar as cores da estação inverno para 2024, de tecidos em lã, cuja coleção deve ser lançada ainda neste mês pela Cootegal. Ou seja, herança do passado, mas com criatividade para despertar novos sentidos pelo uso da lã no futuro.
Entre o afeto e o imaginário
A professora e pesquisadora Beth Venzon, a convite da reportagem, participou da visita à Cootegal, percurso, aliás, realizado anualmente pelos alunos do curso de Moda da UCS. Em cada etapa do processo, ela se dizia “maravilhada” e “encantada”, apesar de não ter sido sua primeira vez (nem a última) caminhando pelos extensos corredores do velho lanifício que está sempre se reinventando.
— Há um tempo, as pessoas tratavam a lã apenas como um produto. Ok. Mas por trás do produto tem uma narrativa. As coleções de moda têm sua narrativa e sua história. Mas os produtos também têm. Então, é bonito quando a gente consegue entender quantas pessoas pensaram e trabalharam nesse processo e em quão incrível é a natureza. Porque se eu estou falando de uma lã natural, eu estou falando que a cor vai vir conforme a vida daquela ovelha naquele período. E é o mesmo que ocorre com o algodão natural — explica.
Esse encantamento, esse olhar para além do produto, segundo Beth, tem uma raiz sensível e afetiva, principalmente para quem viu seus ancestrais tricotando e criando peças para a família usar no rigor do inverno.
— Tem a questão da lã, do quanto importante ela é para nós, não apenas pelas questões culturais e históricas da nossa região como um todo, mas também pelas propriedades que ela tem. Porque ela é a referência cultural do nosso inverno. Ela é térmica, então aquece, mas a lã também envolve, porque tu podes ter uma capa, um cobertor, um casaco, podes ter diversas peças.
E Beth complementa:
— Acho que o tramar está sempre associado ao envolver. E quantas memórias e quantas coisas envolvidas existem ali naquele momento, que nos trazem uma carga de carinho e afeto. Porque o fio da lã te permite pensar e lembrar de tudo isso.
E como se estivesse tricotando, sentada ao redor de uma lareira, Beth filosofa:
— Hoje, a moda está mais voltada para esses valores, de maior atenção para com as pessoas. Com a humanização de tudo. Atualmente, a gente fala muito mais de quem faz a peça, conta as histórias de quem está envolvido no ateliê, traz a tona o carinho envolvido. Isso também é mágico, porque é único.
Ao tecer a vida por meio da herança cultural, Beth estabelece ainda uma conexão entre o lanifício de Galópolis e o trabalho da artista plástica e designer Ines Schertel, de São Francisco de Paula.
— Quantas histórias nós temos a respeito da lã. Porque as pessoas sempre procuraram usar a lã, não apenas por proteção ao clima, mas também para envolver o corpo e é também o fazer, sentadas para fazer o tricô e o crochê. Ou ainda para fazer objetos de lã, trabalhando a lã ou a lã feltrada, que é um tipo de lã com um outro caminho, que produz outro tipo de peça, que pode ser de vestuário ou até para a decoração. São infinitas as possibilidades. É criação o tempo inteiro — frisa.
Pois, é Beth: “é criação o tempo inteiro”, entre o afeto e o imaginário, revisitando técnicas do passado, mas conduzindo a lã para um lugar onde o artificial jamais poderá acessar.
No tempo que a natureza precisa
Em uma fazenda em São Francisco de Paula, a artista plástica Ines Schertel observava o rebanho de ovelhas de seu marido, Neco Schertel. A tosquia, que poderia ser encarada como um dos tantos processos no manejo desses ovinos, foi percebido por Ines como uma enorme potencialidade. Afinal de contas, anualmente, por conta da tosquia uma grande quantidade de lã era produzida.
A partir daí, ela passou a se dedicar ao que se chama de slow design. O termo pode ser traduzido como “design lento” e se remete ao conceito mencionado pela primeira vez pelo designer inglês Alastar Fuad-Luke, que atualmente mora na cidade do Porto, em Portugal. A ideia central é trabalhar com um design sustentável, de produção mais lenta e cuidadosa. E lento não apenas no sentido de ser devagar, mas de estar de acordo com o tempo que a natureza tem.
No caso das obras criadas pela Ines, que se utiliza da lã natural, ela põe em prática esse conceito.
— As ovelhas precisam crescer para então sua lã ser tosquiada, para que sobrem os resíduos para eu dar uma nova utilidade! Assim como o tingimento, em que espero a época das folhas de Eucalipto caírem para poder usá-las, e assim por diante. A tosquia é feita no começo do verão para elas não sofrerem com o calor da lã. Cada coisa a seu tempo e cada etapa com sua história especifica — explica Ines.
A respeito da técnica, a artista revela que usa um método minucioso de fazer tapetes como originalmente faziam as tribos nômades da China, Irã, Afeganistão, trabalhando a lã das ovelhas manualmente.
— Apesar da técnica milenar, exatamente igual há de 4 mil anos ou mais, as peças são atuais, com desenho bem puro e orgânico. A única matéria prima é a lã que uso, a partir do resíduo que fica quando a tosquia se faz necessária para a saúde das ovelhas. A fibra da lã é feltrada manualmente por mim, que aguardo todas as etapas necessárias para que a natureza faça seu trabalho.
Para Ines, apesar de vivermos em uma época que instiga a todo custo o consumismo, há um novo caminho possível, por meio do slow design:
— Acredito que cada vez mais as pessoas optem por escolhas discretas, autênticas e colecionáveis. Como diria Leonardo da Vinci: “A simplicidade é o mais alto grau da sofisticação”. E a lã é tudo isso. Sofisticada, simples, natural, pura.
Para conhecer mais sobre o trabalho de Ines Schertel você pode acompanhá-la pelo Instagram. Ou, por meio deste site.
Curso de tricô e solidariedade
Na Bergamaschi Lãs e Linhas, em Caxias do Sul, ocorrem cursos de tricô, desde o nível iniciante às técnicas avançadas, passando por dicas de mesclas de fios e até noções de arremates, acabamentos e costuras.
As aulas ocorrem nas terças, quintas e sábados. Além de ser um exercício para a mente, as organizadoras do curso dizem que é um excelente momento para tricotar numa boa roda de conversa.
Bergamaschi promove ainda o Projeto Tricotando Esperança, em que as alunas produzem peças de tricô e crochê para serem doadas. Nesta semana, foram doadas 210 peças, entre mantas, meias, blusões e gorros.
Mais informações sobre as aulas na unidade da Sinimbu, 1.401 (ao lado do CDL) ou por meio do WhatsApp (54) 99116-1867.
Instituto Hércules Galló
Inspirado no imigrante italiano que empresta seu nome, o Instituto Hércules Galló nasceu da vontade dos descendentes de preservar a memória do empreendedor do setor têxtil da Serra gaúcha. O propósito é ser tutor do conjunto de residências restauradas, localizada em Galópolis, bairro de Caxias, mas também transformar o local em um centro voltado à cultura e à memória.
Em 2015, foi inaugurado no Instituto o primeiro núcleo do Museu de Território: Galópolis, que funciona de terças a sábados, das 13h30min às 17h30min. Excepcionalmente sobre consulta poderá haver visitação com agendamento. O museu fica a cerca de 10km do centro de Caxias, na BR-116, 1.579, em Galópolis.
Mais informações pelo telefone (54) 3028-2810.
Parque da Ovelha
No roteiro Caminhos de Pedra, em Bento Gonçalves, é possível acompanhar a rotina de uma fazenda de ovinos. As visitas incluem um trajeto guiado e informações históricas e culturais, além da degustação de alguns produtos da marca Casa da Ovelha.
É possível ver, por exemplo, a amamentação dos cordeirinhos e a tosquia do rebanho. Visitas todos os dias, incluindo finais de semana, das 9h15min às 17h (loja). O horário do último acesso ao Parque ocorre às 16h.
O Parque fica localizado na Rodovia Linha Palmeiro, 400 - Distrito de São Pedro, em Bento Gonçalves. Mais informações sobre o roteiro e preços dos ingressos por este site.