A estação mais fria do ano, conforme o calendário, se encerra na próxima quinta-feira (22). Até o fechamento deste ciclo serão 94 dias de um cenário de céu geralmente cinzento, nebuloso, com nuvens pesadas, carregadas de frio e muita chuva.
Aqui na Serra gaúcha há ainda a neblina que é, de certa forma, uma espécie de cartão postal da região. E mesmo agora, com a primavera despontando no horizonte e com temperaturas registradas para além dos 20 graus, as manhãs e noites, por aqui, ainda têm sido bem geladas.
Durante a série de reportagens De Manta e Cuia, veiculadas no caderno Almanaque do jornal Pioneiro, em GZH, na rádio Gaúcha Serra e também na RBS TV, foram apresentadas histórias de moradores da Serra que revelaram de que forma os cinco sentidos podem interpretar o inverno. Nesta última reportagem, quatro mulheres ajudam a estimular e a despertar o leitor para o fabuloso mundo do olfato e do tato.
Há desde as tramas por meio das múltiplas variações do crochê, até a diversidade dos pontos em tricô. Para além de uma herança cultural e das constantes atualizações por meio da moda contemporânea, as peças são um tesouro para acalentar o frio, sobretudo através do toque, provocando afago e carinho em quem veste uma blusa quentinha com fios e linhas.
Ou ainda, permitir-se despertar os sentidos por meio de fragrâncias mais convidativas e assertivas que ajudam a aquecer os ambientes e também a alma. Não se trata de mágica, mesmo que tenham uns segredinhos ali envolvidos, na mistura dos elementos da natureza que servem justamente para essa finalidade. E, claro, o vinho. Além de ser uma boa companhia, desde que sorvido com moderação, os entendidos dizem que há uvas que combinam mais com o clima invernal, como os tintos mais encorpados.
Sem esquecer das realidades distintas que o inverno provoca através as gerações, porque o frio alcança e toca em todos, não importa se estão vestindo ou não roupas que aquecem. Que essa estimulação do poder dos cinco sentidos possa também sensibilizar a sociedade para que estenda o afago que acalenta e aplaca as sensações do inverno, também por meio da empatia e da generosidade. Porque pior ainda do que sentir frio é perceber-se de alma gélida.
Texturas que atraem olhares
Sem forçar a barra é possível desenvolver uma tese relacionando o ato de tramar linhas, estabelecendo pontos e elos, com a fruição do pensamento, seja por meio da matemática ou até mesmo pela filosofia. Pelo menos essa é a percepção que fica depois da entrevista com a também designer de moda Carolina Potrich.
— Me vejo trazendo as tramas mais para a linha do pensamento, quase como um manifesto do que necessariamente o significado do vestir. Porque a moda sempre é cíclica, mas o crochê tem uma herança histórica. E, atualmente, temos visto muito os jovens e adolescentes usando, porque está super em alta — reconhece ela.
Carolina argumenta ainda que a moda não é apenas o que se veste, mas quem revelamos ser ao optarmos por uma peça e que também passa pelo sentido do toque, que, segundo ela, ajuda na escolha de uma roupa em detrimento de outra.
— Sabe o que eu acho, que quando as pessoas enxergam uma peça com textura elas têm a tendência de querer pegar, de passar a mão, de tocar. Gosto dessa aproximação que a textura gera, porque faz com que traga o calor humano. Ao mesmo tempo, para quem produz, é no inverno que essas pessoas têm mais tempo para fazer crochê ou tricô, porque chove lá fora ou o tempo está muito ruim — avalia.
Carolina não enxergava o crochê como um elemento essencial, sobretudo para as suas criações. Apesar de suas memórias sempre lhe remeterem à sua casa, na infância, vendo sua mãe crochetar, ela via essas peças com uma naturalidade que, reconhece, apesar de valorizar, nunca se imaginou utilizando em suas criações.
Enquanto fala, Carolina revela aquele olhar de quem traz as memórias afetivas para dentro da conversa. Ao descrever a mãe que crochetava durante as férias, distante das exigências de sala de aula como professora de matemática, era como se pudesse entrar naquele ambiente para enxergar a Carolina adulta, com sua carreira promissora pela frente, a observar a pequena Carolina deslizando a mão pelo crochê, sentindo cada elo da textura:
— Nem sempre damos valor ao quanto a mão representa nesse trabalho. Porque é também a mão que afaga, como a mão da mãe, que às vezes cura. E por isso, talvez seja tão familiar pra nós, tem tudo a ver com carinho... Eu gosto da relação das mãos no meu trabalho.
Herança ancestral
É fácil perceber quando há paixão envolvida no que se faz. Sente-se para um bate-papo com alguém e dê vazão para que ela discorra sobre sua atividade profissional e questione sobre o seu processo. Se as respostas forem essencialmente técnicas e com frases curtas, é sinal de que, apesar de ser competente no que faz, é só mais uma pessoa em meio a centenas, talvez milhares, fazendo a mesma coisa, mas em um ambiente diferente.
No entanto, se a cada resposta o olhar brilhar ainda mais, se o discurso estiver carregado de memórias sensoriais, que despertam o repórter para que continue a mergulhar ainda mais profundo nesse universo, porque também está tocado em sua alma pelo assunto, é sinal claro de que a entrevistada tem paixão, não apenas pelo que faz, mas também no que desperta no outro com seu trabalho.
— Sou apaixonada por tricô, tanto a mão quanto o retilíneo, que se faz em uma fábrica. O tricô tem uma característica terapêutica. Pegar uma agulha e ficar tricotando na frente da televisão ou ouvindo música, tem função terapêutica — revela a designer de moda Rafaela Tomazzoni, que tem uma grife com seu nome.
Quem nunca tricotou não tem moral para refutar o argumento da Rafaela. Contudo, ela expõe ainda uma outra faceta do que ela chama de “função terapêutica” provocada não apenas pelo ato de tricotar, mas também do vestir:
— Dia desses, eu tive um problema na empresa. Fiquei muito triste e fui para casa na hora do almoço porque eu queria espairecer... Cheguei em casa e estava ainda com frio então pensei em trocar de roupa, porque eu estava com a sensação de que tinha errado na escolha da roupa. Então, fui direto num casaco de malha. E sabe que, quando eu vesti ele, eu juro por Deus, me deu uma sensação de bem-estar, como se a vida estivesse me dando um carinho. Então a moda também tem essa função terapêutica e talvez as pessoas não se permitam a perceber isso.
Permitir-se. Essa foi a palavra mais citada durante toda essa reportagem e, mesmo sem saber disso, a Rafaela, que foi a última entrevistada, reafirma o poder do termo. Porque expôs as sensações que o tato despertou nela, não apenas para aquecer o corpo, mas também a alma. Sem falar das memórias afetivas que o ato de tricotar desperta:
— Eu passei a minha infância assistindo as minhas avós crochetando e com uma habilidade absurda inatingível aos meus olhos de criança. E nunca me ensinaram, talvez por falta de interesse meu. Mas é muito valioso pra mim, como lembrança delas e do fazer. Até porque, esteticamente, um ponto de crochê é maravilhoso. Por isso, fiz uma coleção inspirada na Marcelina e na Joana, em 2018.
Fragrâncias para aguçar sentidos
Entender a relação do toque com a sensação de bem-estar como um afago, provocada quando se veste uma blusa quentinha, com suas texturas de linhas aveludadas, parece ser mais simples do que compreender que aromas e fragrâncias despertam o mesmo. Nesse sentido, é melhor ouvir quem trabalha nessa área para que explique que mágica é essa.
A Nathalia Longaray Bellicanta é proprietária da EB Fragrance, especializada em criar perfumaria para ambientes com base na perfumaria pessoal. Além disso, ela entende que é possível desenvolver fragrâncias que despertem sensações de aconchego propícias para essa que é a estação mais fria do ano.
— Eu acho que a perfumaria, de um modo geral, tem conexão com os diferentes momentos da nossa vida. Em especial, lancei um perfume neste inverno. O Black Wood foi pensado para esta estação. É um perfume forte, quente, amadeirado, tem um pouco de notas orientais e vai canela. A ideia então é que mesmo que esteja frio lá fora, aqui dentro a gente consiga uma fragrância quente — explica.
Seguindo o raciocínio, ela complementa:
— Comparamos isso com a culinária ou as bebidas, ao escolher um vinho, um uísque ou um conhaque. Na perfumaria também procuramos as notas mais quentes ou famílias olfativas mais pesadas como as madeiras, as baunilhas ou as orientais.
A partir disso, ela explica ainda que esses elementos combinados despertam sensações, principalmente no inverno.
— Essas fragrâncias vão te trazer uma perfumaria mais aconchegante, um estigma quase que de proteção. A baunilha, bem como as fragrâncias adocicadas, trazem muito a sensação de conforto. Então sempre vamos pensar na baunilha junto com um cobertor ou uma roupa confortável. É um ambiente diferente do verão, que é mais fresco, quando usamos notas mais verdes e cítricas, por causa do calor.
Mais uma vez surge com força e potência a memória afetiva da infância como um elo que pode ajudar a despertar e sensibilizar as pessoas para se permitir viajar um pouco nessa história de aromas e fragrâncias:
— O perfume é uma forma de demonstrar um pouco de nós nos espaços onde estamos. É um meio de comunicação invisível e silencioso. Porque com o perfume tu consegues passar uma sensação. Muitas dessas percepções aparecem porque temos uma memória lá da infância. Por exemplo, o aroma do pão e do café, são detalhes que nos trazem boas recordações. Essa conexão ocorre sempre, em todas as estações, em todos os momentos.
Banco de dados da infância
Propor uma entrevista com uma sommèliere pela manhã pode provocar um certo estranhamento, visto que, o consumo de vinho logo cedo é bem incomum. No entanto, as notas do paladar não faziam parte dessa reportagem, mais focada, neste caso, nas sensações provocadas pelos aromas que a bebida entrega.
— Brinco que temos um banco de dados olfativo e formamos isso ainda na infância, que é onde remetemos as memórias. E depois, ao longo da vida, tu vais agregando conforme os teus costumes — sintetiza a sommèlier Fernanda Spinelli.
De taça em punho, ela explicou ao fotógrafo Bruno Todeschini os passos para analisar um vinho. Entre eles, alguns processos que são essencialmente visuais e olfativos, diferentemente do que a maioria das pessoas poderia supor, ao entender que o paladar é a melhor maneira de considerar as qualidades da bebida.
— Por exemplo, eu posso sentir aroma de maçã em um vinho branco, mas não é que tem maçã naquele vinho. Tem compostos químicos aromáticos que a maçã tem e aquele vinho também tem. Porque é uma forma de explicar sem entrar em detalhes químicos e uma forma de expressar o que sentimos — justifica Fernanda.
Em se tratando do inverno, é preciso desenvolver ainda mais as percepções olfativas a fim de escolher um vinho que desperte uma sensação de aconchego que se tem ao vestir uma malha macia e fofinha ou até mesmo quando sentimos uma fragrância perfumada em um ambiente.
— A gente relaciona vinhos mais encorpados e mais estruturados sempre com o inverno. Apesar de que eu ache que se pode tomar em qualquer estação, mas daí a temperatura do vinho vai fazer diferença. Os aromas desses vinhos, que geralmente tomamos no inverno, são mais pesados, pois não são tão voláteis, e demoram mais para abrir. Então, podemos resgatar a tradição de decantar o vinho para ele abrir os aromas. Porque quando tu colocas o vinho na taça, os primeiros aromas que vão se pronunciar são as moléculas mais leves e, depois, conforme o vinho está ali, em contato com o oxigênio, as moléculas mais pesadas vão abrindo — explica Fernanda.
Para além dessa explicação mais técnica, por assim dizer, a sommèliere entende também, como já frisado nessa reportagem, que as pessoas precisam se permitir experimentar as sensações que o olfato pode ajudar a despertar.
— As pessoas têm de se conectar com elas mesmas e experimentar o que combina com o que, de certa forma, é muito do aconchego que procuramos no inverno.
E, desde que bebido com moderação, Fernanda reconhece:
— O vinho é uma boa companhia.