Para além da sensação de frio, percebida pelo vento intenso e gelado que derruba a temperatura ou pela umidade que parece nunca ter fim, seria possível estabelecer a imagem definitiva que representa o inverno? Um dos caminhos possíveis pode ser o da observação, desde que contemplativa, atenta às nuances da transição entre as estações.
Dias atrás, atravessando outono adentro, grande parte das árvores ainda ostentava folhas em matizes de tons terrosos. E o que dizer do céu que se revelava em tom alaranjado, intenso, quente e afável, sobretudo aos finais de tarde? Apesar do frio, a paisagem outonal se apresentava mais terna e acolhedora. Com a proximidade do inverno, no entanto, as poucas folhas que ainda agarravam-se com bravura às copas das árvores caíram, revelando galhos secos e quebradiços.
Essa imagem invernal traz consigo uma sensação de frieza, mesmo quando a temperatura não despenca. Nessa estação, é difícil até diferenciar espécies de árvores, porque, sem folhas e disformes, perdem a identidade, como se tivessem sido punidas com rigor, dureza e aspereza. Talvez por isso, a imagem mais representativa do frio, quer seja na pintura, na fotografia ou na memória afetiva dos moradores da Serra, ainda é a imponente araucária, forte e esguia, que lá do alto observa a geada queimar as pastagens.
A partir da mesma percepção de comparação, é possível compreender como o inverno se impõe diante de distintas realidades. Faz sentido pensar o inverno como a estação que traz uma sensação de aconchego, quando se está aquecido dentro de casa, seja ao lado do fogão a lenha, da lareira ou até mesmo de um pequeno aquecedor junto aos pés. Mas para quem tem apenas a calçada como colchão, para quem não tem abrigo, quanto mais um lar para se proteger, a estação mais fria do ano parece congelar até a alma.
Nesta primeira reportagem da série De Manta e Cuia, projeto em parceria entre jornal Pioneiro, rádio Gaúcha Serra e RBSTV, a ideia é refletir sobre a temática invernal e suas sensações despertadas pela visão.
Por isso, as provocações acima, a partir do olhar externo diante de uma paisagem, mas também da percepção interna, de como o inverno pode, inclusive, nos conscientizar acerca da importância da empatia. São dois prismas. Nada excludentes e, sim, intimamente complementares e que dão uma dimensão ainda mais universal a um tema que, por vezes, se resume a “amo o inverno” ou “odeio o frio”.
Contemplação ou foto para rede social?
Em São José dos Ausentes, a sensação de frio é inesquecível. Na borda dos inúmeros cânions, tendo cadeias de serra e cachoeiras a perder de vista, o vento é impiedoso e traduz com exatidão o que significa o rigor do inverno. Inesquecível também é a força da paisagem.
— A sensação é de deslumbramento, sempre — revela a porto-alegrense Sabrina Flores, 35 anos, condutora de Eco Turismo da Flores Eco Tur, morando há sete anos em Ausentes.
Ela organiza verdadeiras expedições, que são mais do que um simples passeio, conduzindo turistas pela história, cultura e, claro, para desvendar a imponente paisagem dos Campos de Cima da Serra:
— Sempre brinco com as pessoas que eu tenho minhas paisagens favoritas e que elas lembram muito os quadros que via na casa da minha avó ou da minha tia, com araucárias. Aí eu digo para as pessoas: “Estão vendo esse lugar? É lindo. Esse é o quadro ao vivo e a cores das araucárias que víamos na casa das nossas tias e avós”.
Sabrina revela que, sem exceções, quem visita Ausentes quer ter uma experiência de frio durante o dia, mas, naturalmente, quer banho quente e dormir a noite quentinho.
— Lembro de um turista que veio naquela suspeita de neve dias atrás. Ele estava deslumbrando e encantado com a chuva congelada. Devia ser umas 11 da noite e estava perto de 0º, estava bem frio, e ele todo molhado, mas nada preocupado, porque ele queria viver a experiência do frio. Ele dizia: “Daqui a pouco vou pra dentro e me esquento. Agora quero congelar” — recorda.
Agora, quando o assunto é fazer o trajeto para chegar até a margem dos cânions, Sabrina diz que tem dois tipos bem distintos de turistas. O primeiro é aquele que literalmente quer sair bem na foto, não ouve a recomendação sobre qual a roupa ideal para encarar o desafio, porque simplesmente quer fazer a foto para publicar em rede social e voltar correndo para se aquecer ao lado da lareira na pousada. Mas há também aqueles que acabam sendo atraídos pelo magnetismo da paisagem e perdem-se na contemplação dos cânions:
— A gente avisa: não se trata de roupa bonita, tem de se roupa que protege do frio. Porque aqui em cima o vento é forte, tem um ar gelado. Já tive cliente que veio pra cá só pelo frio, mas acabou descobrindo que aqui, além da beleza das paisagens, tem tropeirismo, eco turismo, cultura e gastronomia.
Interferência na paisagem
Do alto da localidade de São Luiz da 6ª Légua, a professora, pesquisadora e doutora em História, Teoria e Crítica Silvana Boone, 54 anos, vislumbra Caxias. Nos dias de neblina densa como na última semana, da janela de sua casa ela enxerga uma paisagem quase etérea e que praticamente esconde a cidade. Não fossem alguns arranha-céus a furar o bloqueio imposto pela bruma, que se revela entre o cinza e o branco, a sensação de frieza e, até de um certo desamparo, roubariam a cena.
Para quem, como a Silvana, que é coordenadora dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais da UCS, e está acostumada a desafiar os limites do olhar e da subjetividade contida em imagens, sons, cores e expressões, uma simples entrevista se transforma em um espaço de reflexão estética.
— Falávamos da ideia de paisagem, né? O que é, afinal, a paisagem do inverno? — questiona ela, que complementa:
— Se pedir para 100 pessoas qual é a imagem do inverno elas vão te dar uma descrição muito parecida. Assim: céu em cor cinza, tem de ter araucária, tem de ter neve ou geada. Eu acordo cedo e desço para a cozinha e ligo a tevê no Bom Dia Rio Grande. As fotos de frio que as pessoas enviam são sempre as mesmas. Seja de Caxias, Bom Jesus ou Vacaria, só muda o lugar, mas são sempre fotos muito parecidas. Talvez não seja só aqui, mas as pessoas vão criar as mesmas imagens, que são inconscientes.
Essa padronização do olhar, esse estereótipo, é, na visão de Silvana, uma idealização da imagem. É nesse sentido, acredita ela, que a arte se apresenta com um elemento capaz de criar uma fissura nessa padronização. Um dos exemplos é um conjunto de obras, sem nome, do artista Félix Bressan, produzidas em 2000 e que, atualmente, ocupa o pátio interno do Campus 8 da UCS (foto acima).
— Todo conceito de arte urbana envolve isso, estar junto da obra, estar na obra. Essas obras do Félix acho que as pessoas normalmente não interagem com ela. Mas o que eu acho legal é que a arte urbana interfere no teu olhar. Se tiver uma paisagem linear e, se tiver um guindaste ou uma escultura ali na tua frente, isso vai interferir na paisagem. Tem vários artistas que trabalham para te motivar a enxergar além do que se vê — analisa.
Ainda nessa trilha da idealização da imagem, fixa na paisagem que parece habitar o inconsciente coletivo, Silvana sugere uma provocação que vai além da estética.
— Quando idealiza uma paisagem de inverno, quer ver nessa paisagem uma neblina bonitinha, quer ver a geada, quer ver a gotinha de gelo na roupa. Mas quem gosta de recolher a roupa no varal que ficou congelada na madrugada? Eu acho que tem poesia na paisagem do inverno. Mas se tu sair da poesia, tem de questionar ao morador de rua se ele gosta do inverno.
Café e banho quente para combater a frieza
A neblina que surge no amanhecer gelado de São José dos Ausentes, cobrindo a cadeia de cânions, é a mesma que paira sobre o bairro Cinquentenário, em Caxias. Mas, enquanto a névoa em Ausentes provoca uma sensação de deslumbramento, a bruma, a chuva fina e o frio são o pior cenário aos moradores em situação de rua que aguardam na fila do Centro Pop Rua.
Cerca de 40 homens, entre jovens de 20 e poucos anos e senhores de cabelos ralos e brancos, ouviam atentamente às instruções da gerente do espaço, Márcia Fuhr. Alguns deles ainda estavam encharcados da chuva e da umidade que todo inverno estabelecem morada na Serra. Na entrada, um deles, resmungava:
— Odeio o inverno.
O Centro Pop Rua, mais do que um serviço público que atende às necessidades dessa população, se transforma em um espaço simbólico, de afeto e amparo, talvez o mais próximo do real sentido do que significa uma família.
A partir das 8h30min, os moradores em situação de rua podem acessar o prédio, recebendo a oportunidade de tomar café com sanduíches e frutas. Nesse meio tempo, até as 11h, além da refeição podem tomar banho, e se for preciso, encaminhar documentos, enviar currículos e fazer contatos por telefone com familiares. O mesmo serviço é oferecido entre as 13h e as 16h. O café, o banho quente e a roupa limpa aplacam o frio. Assim, sentem-se mais dispostos e, na maioria das vezes, são agradecidos:
— Que Deus abençoe e nunca falte nada na sua casa, tia — agradeceu um deles, devolvendo o prato e a caneca vazia.
O inverno é, e continuará a ser, a estação mais fria e rigorosa. A paisagem pode revelar-se poética e contemplativa. Mas jamais esconderá, mesmo dentro da neblina cerrada, que a rua é o lar de muitos. E qual é o som que pode ressignificar o sentido de um inverno mais humano? Leia na próxima reportagem especial do De Manta e Cuia, em julho.
Ouça a reportagem:
De Manta e Cuia
Parceria entre o jornal Pioneiro, a rádio Gaúcha Serra e a RBSTV.
No caderno Almanaque, além desta reportagem, cujo enfoque é refletir sobre o inverno e suas sensações despertadas pela visão, serão publicadas mais três matérias especiais, em julho, agosto e setembro.