É outono em Caxias. Nessa época, o amanhecer e entardecer nos revelam o sol em tom alaranjado. É quase como uma moldura a acolher o frio que brota com mais intensidade. O outono não tem a voracidade do inverno, que precisa se impor como a estação mais fria. No entanto, só o outono sabe dosar ternura e aspereza, porque sabe ser singelo e dócil, como um menino correndo num campo de centeio, mas também sabe ser azedo e severo, como aquele velho tio preso na areia movediça do passado.
Outono é tempo de introspecção, de voltar para a caverna de Platão. Porque há sempre uma lição escondida, que precisa ser decifrada ou decodificada. O outono ensina e quem não aprende toma tapa na cara do inverno, que não tem o mesmo equilíbrio, pois ao inverno cabe congelar, petrificar, se possível. No outono, aprendemos que ainda há tempo. Mas, pra valer a pena, é preciso voltar pra caverna, encarar anjos e demônios, sem se deixar distrair pela dança das sombras.
Outono é tempo de ouvir quem domina a arte da sutileza nas cordas e acordes. Não há como atravessar o outono sem Piazzolla, Norah Jones, Bill Evans, Vitor Ramil, Radiohead ou Portishead. E, sobretudo, sem Alice in Chains. O Johnny Cash e o Joy Division também poderiam fazer parte da trilha sonoro outonal, mas é prudente reservá-los para o rigor do inverno. Porque eles são caras que apontam a saída.
Outono é tempo ainda de mesclar-se às cenas narradas e poetizadas por Ana Cristina Cesar, Caio F., Clarice, Dostoiévski, Saramago, Pedro Mairal, Paulo Scott e Marcelo Mirisola. E claro, Nil Kremer, a poeta dos olhos da cor do outono. E depois de sair da caverna imposta pelo outono, pelo menos uma vez a cada sete anos, em tempo sabático de shemitah, quando os judeus deixam a terra descansando, é preciso encarar a leitura de Graça Infinita, de David Foster Wallace. É livro pra ser lido entre o outono e o inverno, ao som de Cash.
Passa das seis da tarde e sigo debruçado sobre o parapeito da janela. Observo o céu azul tomado de matizes alaranjadas. O tempo que dura esse espetáculo do sol alaranjado é suficiente praquele tio sisudo, fechado em si mesmo e enraizado nos dilemas do passado, voltar a ser aquele menino que corria depressa, por meio da plantação, em direção ao pôr do sol. E tudo isso ficaria ainda melhor se pintado por Van Gogh. O título da obra? Extenso o suficiente pra deixar o Wallace sorrindo: "O sol do outono e uma pequena lembrança — será que é pedir demais?". Seria um bom título, mas é só uma frase de Joana a contragosto, um livro do Mirisola.
Bora lá que o sol se foi.