É quase verão na Serra gaúcha. Na bifurcação de duas movimentadas ruas do centro da cidade, um jovem oferece um pedaço de abacaxi. Diz ele que o fruto é doce como um beijo apaixonado. Sua oferta são três abacaxis por R$ 15, mas bem chorado sai por R$ 10. Observo a cena, na esquina diagonal, esperando o sinal verde. Atravesso ruas e avenidas sempre sobre a faixa de segurança na esperança de que eu não morra na contramão, atrapalhando o tráfego.
Atrevido, um motoboy acelera sobre o asfalto quente. Sua vida é equilibrar-se no fio tênue entre vida e morte, duelando contra o tempo. O empreendedor sobre duas rodas joga sozinho um campeonato de pontos corridos, sem chance de se lesionar. Afinal de contas, sua renda é proporcional ao risco que assume. Durante a travessia de um dia, esquiva-se de um sem fim de acidentes. Seja por perícia ou sorte, chegar incólume em casa é uma dádiva, uma bênção.
Uma certa Maria acorda antes do sol despontar no horizonte. Faz as suas orações da manhã, agradecendo a vida. Acende uma vela pra selar sua fé. Prepara então o café para o marido e os filhos. Os três meninos encaram os últimos dias de escola. Dois deles querem ser jogadores de futebol e, o outro, astronauta. O pai, que é pedreiro — e ainda não tem uma casa pra chamar de sua — faz as contas pra saber até quando conseguirá manter os guris na escola. O mais velho, com quase 14 anos, vai ajudar o pai durante as férias.
Um certo José contabiliza os últimos dias antes da aposentadoria. No dia 6 de janeiro deixará de conduzir um dos centenas de ônibus do transporte coletivo em Caxias do Sul. Ele viu a vida passar do alto de um ônibus, encarando sol à pino, chuvarada, neblina e até neve. Quando começou a trabalhar nessa empresa ainda era solteiro, usava cabelo comprido, ao estilo da dupla Chitãozinho e Xororó. Não por acaso, José conta que sua música preferida de todo sempre é Evidências.
Na contramão, mais um atropelado na Serra gaúcha. Diz reportagem de GZH: “De janeiro a setembro, 1.257 morreram no Rio Grande do Sul, vítimas de acidentes. O aumento é de 7,9% no comparativo com o mesmo período do ano passado. Os dados são do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS)”.
A vítima não é só o menino que sonhava ser astronauta, nem só a menina que sonhava ser Miss Brasil, tampouco o quase aposentado. A vítima somos todos nós. Porque não existe “nós” e “eles”. A sociedade é (ou deveria ser) um só corpo. Um corpo que padece, pálido, beijando o asfalto, é o atestado de que falhamos — negando as aparências e disfarçando as evidências.