Um dos textos mais debatidos da história da humanidade, O Mito da Caverna, de Platão, foi escrito 380 anos antes de Cristo e, ainda hoje, apresenta a mais profunda e precisa explicação sobre a nossa ignorância. Onde quer que você vá, lá estão os prisioneiros da caverna negando a realidade e mergulhando nas sombras de um mundo distorcido que eles próprios escolheram enxergar.
Mas comecemos do começo. Se você já conhece o mito, creio que não verá problema em ler outra vez sobre ele, visto que a história é muito boa. Platão conta que um grupo de pessoas – morri de pena quando li sobre elas no colégio, então vale lembrar que isso é uma parábola, não aconteceu de verdade – nasceu e cresceu dentro de uma caverna escura. E todos tinham seus braços, pernas e pescoços presos por correntes. Era uma chatice, porque a turma só conseguia olhar para o fundo da caverna: ninguém nunca tinha visto o que havia lá fora.
E, do lado de fora, havia uma fogueira. E, em volta dessa fogueira, gente que passava com objetos e bichos e qualquer coisa que um ser humano carrega por aí. Mas os prisioneiros, sempre olhando para a parede do fundo da caverna, só conseguiam enxergar as sombras desse monte de coisa. Para eles, as sombras eram a realidade: aquele mundinho minúsculo, limitado e fictício era, na cabeça deles, o mundo real.
Só que um dia, que maravilha!, um dos presos conseguiu escapar. Foi meio estranho no início: seus olhos doeram com tanta luz, ele sentiu vontade de voltar para a caverna, mas tanta liberdade e novidade, tanta descoberta naquele mundo sem limites, foram deixando o homem encantado, feliz, realizado. Lá foi ele buscar os velhos amigos, mas, quando entrou na caverna de novo, aí foi a escuridão que afetou seus olhos.
Sem conseguir enxergar direito, foi visto como doente por todo mundo – ninguém acreditava no que ele contava. Passaram a enxergá-lo como ameaça: "Esse louco ainda vai atrair mais gente para fora da caverna, e o pessoal vai acabar cego e doido que nem ele". Solução: mataram o coitado. Fim da história.
Não há problema em admirar alguém, em seguir um líder, em festejar suas ideias. O problema é abrir mão de questionar, é parar de pensar.
É fácil entender a metáfora toda: a caverna simboliza os limites do nosso mundo quando estamos acorrentados, presos às nossas crenças, ao senso comum, aos dogmas e à ignorância. No momento atual do país, brota de todo canto gente amarrada ao conforto da obviedade, gente fugindo da avaliação racional e independente, gente que evita refletir por se contentar com verdades (ainda que falsas) oferecidas por quem pensa exatamente como elas.
São como o grupo da caverna, que nasceu e cresceu acreditando só no que a própria turma dizia – e, quando alguém tentou apresentar o outro lado, tornou-se inimigo de morte na mesma hora. Uma reportagem da Débora Ely, publicada em GaúchaZH nesta semana, mostrou a rede de fake news montada por eleitores de um candidato no WhatsApp. Fica claro que eles realmente acreditam nessa rede, e não na imprensa, não em quem está fora do grupo, não em quem apenas busca a verdade – seja ela boa ou ruim.
Não há problema algum em admirar alguém, em seguir um líder, em festejar suas ideias. O problema é anular-se. É abrir mão de questionar, é parar de pensar, é ter um ataque histérico quando alguém expressa uma dúvida. É assim que nos enfiamos na caverna. É assim que Platão segue atual. É assim que se confirma o mito.