Desde os 10 anos, Vagner de Vargas Marchi, de São Marcos, já sabia o que queria ser.
— Eu tinha primos que estudavam enologia, e eu já dizia que queria ser enólogo. Tinha que explicar até mesmo para os professores porque, naquela época, era um profissional que não era tão conhecido — recorda o enólogo da Vinícola Monte Sant'Ana.
Vagner tem 30 anos, mas já acumula mais colheitas do que a maioria dos colegas com a mesma faixa de idade pelas experiências internacionais que teve e por trabalhar também como consultor em outras regiões do país. No verão, ele administra a colheita da vinícola que comanda junto com a companheira Carolina Soldatelli Zardo. No inverno, vai ao Sudeste e Centro-Oeste auxiliar clientes de sua consultoria Flœno. Nestas regiões do país, uma técnica, conhecida como dupla poda, possibilita que as uvas maturem na época mais propícia à qualidade de seus climas, com tempo seco e noites mais frescas.
Ainda quando estava em formação acadêmica, Vagner também "engrossou" seu currículo de vindimas se revezando entre os hemisférios Norte e Sul. Após a formação em Bento Gonçalves e trabalhos de pesquisa na Embrapa, o jovem enólogo tinha o desejo de aprimorar seus conhecimentos com uma formação na área que até então não existia no Brasil. O primeiro Mestrado Profissional em Viticultura e Enologia do país só teve o seu primeiro edital publicado no final do ano passado pelo Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) de Bento Gonçalves.
Vagner fez o Vinifera Euromaster, um programa de mestrado em Viticultura e Enologia de dois anos, com passagens por grande parte dos principais países produtores de vinhos do Velho Mundo, França, Itália e Alemanha. Mais do que ser aprovado no programa, ele precisava ganhar uma bolsa para poder se manter estudando fora do país. Na primeira tentativa, ficou em sexto lugar, mas só os cinco primeiros ganhavam o incentivo.
Decidido a não desistir, o enólogo buscou descobrir o que tinham os outros candidatos melhores classificados que Vagner ainda não tinha. Descobriu que eram questões de idiomas e de mais experiências internacionais. Como o mestrado era em inglês, percebeu que precisaria reforçar a língua e foi então que fez suas primeiras safras fora do país, no Napa Valley, na Califórnia, a principal região produtora de vinhos dos Estados Unidos, e no McLaren Vale, uma das áreas referência no cultivo de uvas tintas na Austrália.
Além de praticar o inglês e a enologia nesses locais, o enólogo são-marquense conquistou a bolsa e concluiu o mestrado internacional. Além de ter tido oportunidade de participar de uma colheita em Bordeaux, na França, trabalhando no Château Potensac, no norte do Médoc, ainda conheceu na formação o sócio de sua consultoria, Federico Novelli. Juntos eles atendem novos projetos de viticultura em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Brasília. O trabalho serve de termômetro também para explicar por que há mais jovens protagonistas na Serra do que nas novas fronteiras vinícolas do país.
— Nossos clientes são pessoas mais maduras pois, para iniciar um projeto do zero, precisam de muito investimento. Mas, estão trabalhando com muitos jovens. Aqui na Serra temos mais jovens na linha de frente por já existir uma infraestrutura pronta, tanto de acesso a fornecedores, ou mesmo de vinícolas consolidadas — compara.
O projeto de Vagner em São Marcos comprova esta percepção. No retorno do casal ao Brasil, em 2019, resolveram empreender assumindo a operação da vinícola que foi fundada pelos familiares de sua companheira. Hoje, a Monte Sant'Ana já tem oito rótulos lançados e mais vinhos em maturação para serem colocados no mercado no próximo ano. O Moscato Giallo, inclusive, é um dos mais premiados. Há dois anos, o empreendimento também se voltou para o enoturismo, aproveitando a estrutura da vinícola e a bela paisagem natural do jardim e do mirante, o ponto mais alto da propriedade, o qual serviu de inspiração para o nome da vinícola. Com vista para o Rio das Antas e municípios, como Antônio Prado e Flores da Cunha, o público que visita o ponto aos finais de semana hoje também é o principal consumidor da marca.
Mesmo tão jovem, o enólogo já observa mudanças significativas do início de sua carreira para os dias de hoje.
— Quando comecei, o que se tinha eram vinícolas gigantescas, e os colegas seguiam dois caminhos: ou muito comercial ou dentro destas cantinas. Hoje, com o mundo muito mais globalizado, se tem acesso a outras ferramentas, é possível fazer o seu próprio vinho ter chance de se comunicar melhor com o consumidor final. Isso tudo abriu portas para vários projetos autorais, para vinícolas pequenas — aponta.
Ousadia no berço das primeiras uvas das Américas
Com 26 anos, uma enóloga de Bento Gonçalves alcança projeção internacional. Pietra Rech Possamai hoje é responsável pelo departamento de vinhos da Bodega Murga. Situada no Valle de Pisco, no Peru, a empresa produz pisco, destilado de vinho, bebida típica do país. Pietra foi contratada, no início de 2019, para ser a responsável pela implantação do departamento de vinhos da bodega. Hoje ela lidera um projeto de vinificação com uvas patrimoniais, também chamada criollas, exemplares trazidos da Europa na época da colônia espanhola. A viticultura no Peru data de 1540.
— Estou trabalhando com as primeiras uvas a chegar nas Américas vindas das ilhas Canárias. Fiz o meu trabalho de conclusão de curso sobre a vinificação natural com estas castas, pois o primeiro vinho nas Américas foi feito no Peru — conta a enóloga.
Entre as uvas utilizadas para a elaboração estão as variedades Mollar, Albilla, Negra Criolla, Itália e Quebranta, esta última considerada a principal uva peruana. Pietra mora em Lima, capital do país, mas nesta época do ano passa mais tempo em Pisco, sede da Murga, onde acompanha de perto a colheita. Além de elaborar os vinhos, a jovem enóloga é responsável pela concepção das marcas:
— Quando vejo a uva no vinhedo eu já sei o nome que o vinho vai ter — revela a autora.
O Sophia L'Orange, por exemplo, é um vinho laranja feito das uvas Quebranta e Mollar que remete à estrela no cinema italiano Sophia Loren, não só no nome, mas também na silhueta estampada no rótulo. Segundo Pietra, produtos assim demonstram como os jovens estão protagonizando um movimento que amplia cada vez mais fronteiras.
— Acabamos de realizar nossa primeira exportação para Nova York e isso me emociona muito. Uma das coisas mais legais que ouvi sobre os nossos vinhos é que eles refletem, exatamente, a imagem de um produto feito por quem tem a minha idade. Ele é responsável, mas também é divertido. Ele demonstra liberdade, ousadia... e eu fico muito satisfeita por trabalhar em um lugar que permite exercer minha profissão sem precisar abrir mão da minha juventude — destaca a enóloga.
Pietra também se diz muito grata por ter tido oportunidade de começar a trabalhar aos 17 anos em uma vinícola. O primeiro emprego foi na Almaúnica, onde ficou três anos, e aprendeu a vinificar com os colegas enólogos Márcio Brandelli (in memoriam) e Giovanni Ferrari. Ferrari que é outro jovem protagonista neste cenário. Ele abriu sua própria vinícola, a Arte Viva em Monte Belo do Sul, em 2019, aos 33 anos.
Pietra ainda fez alguns projetos de pesquisa na Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, sobre o solo para uvas de sucos. E trabalhou com a Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho) até ser convidada a participar do projeto de Helio Marchioro para a implantação da Casa Ágora em Pinto Bandeira. Foram estas experiências anteriores que a credenciaram para assumir o desafio atual em terras peruanas.
Destaque em seleção mundial
Por detalhe, o mundo dos vinhos não perdeu um talento para a indústria da carne. Depois de seis anos como estagiária sem perspectivas de contratação no setor descoberto como paixão durante a faculdade de Engenharia de Alimentos, Fernanda Rodrigues Spinelli, 35 anos, já estava até fazendo entrevista para atuar em um frigorífico. Só não abandonou a análise de vinhos por insistência do pai. E agora, mais de uma década após o episódio da quase troca de carreira, a sommelière é uma das três mulheres selecionadas em todo o planeta por uma organização internacional de apoio à inserção feminina no mundo do vinho para uma bolsa de qualificação WSET4 _ uma das mais prestigiadas no mercado internacional de bebidas.
Fernanda é a única brasileira contemplada com a indicação. As outras escolhidas são do Reino Unido e de Barbados. Quando concluir a formação, em cerca de três ou quatro anos, fará parte de um seleto grupo de especialistas que, atualmente, não chega a 20 pessoas em todo o país.
— No começo da faculdade (na Universidade de Caxias do Sul) fiz uma disciplina de análise sensorial, com degustações de alimentos e bebidas e gostei muito. A professora era a Regina Vanderlinde (que se tornaria, em 2019, presidente da Organização Internacional da Vinha e do Vinho, a OIV), que trabalhava no Laren (Laboratório de Referência Enológica) com análises de vinhos e me convidou para um estágio, ainda em 2004 — relembra o começo.
A partir daquele momento, direcionou toda formação para esta área. Fez um Mestrado em Biotecnologia e Gestão Vitivinícola e, posteriormente, o Doutorado voltado ao estudo da composição química de sucos de uva e vinhos. Até hoje atua no Laren, um dos principais polos de referência em pesquisa e tecnologia do setor no Brasil.
O ponto de virada na carreira _ ou, o momento em que não trocou os cálices e taças pelo controle de qualidade no abate de animais _ surgiu em 2010, via contratação do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), em Bento Gonçalves, para continuar atuando na área técnica e científica por uma década. Em paralelo, com apoio de Regina, encontrou espaço na OIV como expert da Comissão de Enologia, coordenando um grupo de especialistas. Desde junho, Fernanda também compõe o núcleo de curadoria da VinumDay, um marketplace especializado no garimpo de raridades entre vinhos e espumantes de todo o mundo, com sede em Caxias do Sul.
O curso que fará é a continuação da qualificação como sommelière internacional. A bolsa que conquistou é a para o WSET4, oferecida pelo Women of The Vine & Spirits.
— Hoje, no Brasil, menos de 20 pessoas detém o grau WSET4 de qualificação no mundo do vinho. Acima disso, só Master of Wine, que é um grupo ainda mais restrito. Conforme informações da Women of The Vine & Spirits, eu fui a primeira brasileira a conquistar essa bolsa — aponta
A bolsa conquistada lhe garante cerca de 70% do valor do curso.
— Quando veio o resultado, meu pai brincou: "Viu? Te falei para continuar no vinho!'" _ diverte-se.
As aulas começam na terça-feira na Enocultura, escola de São Paulo licenciada para aplicar os cursos da organização internacional no Brasil.