Durante a série de reportagens do projeto De Manta e Cuia, parceria multimídia entre jornal Pioneiro, RBS TV e rádio Gaúcha Serra, o inverno tem sido o personagem revelado a partir dos cinco sentidos. Seja por meio da visão ou do paladar, já retratados em textos, imagens e sons, bem como através da audição, que é o tema desta reportagem deste sábado (27), o frio de fato está impregnado na alma do gaúcho e se estende para as expressões da sua cultura, folclore e tradição.
Não se quer dizer com isso que exista uma imagem, um alimento ou um som que sintetize em si mesmo o sentido do inverno. Mas, a partir dessa investigação do cotidiano é possível extrair personagens que explicam qual é a sua relação com a estação mais fria do ano. Em se tratado da audição, por exemplo, há um sem fim de sons que aguçam os sentidos e percepções e transportam as pessoas a um manancial de memórias e lembranças, ora de aconchego, como o som de lenha estalando no fogo, seja de uma lareira ou fogão de chão, ora de arrepio na espinha, quando o vento Minuano ressoa, sacodindo janelas e portas.
Alguns podem sustentar a ideia de que a música intimista é ideal para um dia de frio intenso e rigoroso. É o caso do músico argentino, radicado em Caxias há 15 anos, Lucio Yanel. Correndo em suas veias está a milonga pampiana, que traz em si mesma o rigor da herança ancestral dos povos originários e um convite, por conta da sua sonoridade melancólica, a uma imersão interior, para cada ouvinte se conectar a sua alma.
Por outro lado, há quem prefira encontros como o filó, herança da tradição dos italianos que ocupam a Serra desde 1875. Não importa a temperatura lá fora, em uma casa que celebra filós, o convívio, a música, a cantoria, a dança, além do vinho e da mesa farta, contribuem para a temperatura se contrapor ao frio, aquecendo corpo e alma.
Nessa reportagem, para além do gênero musical, seja para extravasar ou para introspecção, há um caminho possível para determinar como a audição pode contribuir para ressignificar a forma com o corpo percebe o inverno. A melhor pista é seguir o som do coração.
Filó: extravasar para espantar o frio
O filó não tem estação determinada. Ocorre durante o ano todo, respeitando, é claro, o tempo de colheita das mais diversas culturas semeadas na Serra, porque o trabalho, vem em primeiro lugar. Esse encontro tem origem lá nos primórdios da colonização italiana.
— Eu me lembro de filó desde quando eu era piazote e do que meus pais e meus avós me contavam. Eles se reuniam na casa dos vizinhos, porque não tinha telefone como hoje, né? Então eles iam na casa uns dos outros pra combinar de se encontrar pra fazer o filó. Então cada um levava uma coisa, que podia ser batata, o outro levava pipoca, se era época de pinhão, levava o pinhão, ou ainda amendoim e o vinho, claro. E muitos deles que faziam o queijo e o salame levavam junto com o pão — conta o agricultor Antoninho Tumelero, 61 anos, morador da Linha Jacinto, interior de Farroupilha.
Por tradição, o filó é sempre celebrado a noite, como explica Tumelero, "se fosse durante o dia eles perdiam tempo de trabalho, por causa do sol". Durante a noite, mesmo no fim do inverno, a temperatura cai. Só se for do lado de fora da casa onde ocorre o filó. Porque em uma reunião entre vizinhos e amigos como essa, além da comunhão de alimentos — e vinho, claro — há cantoria, música e dança, que ajudam a aquecer o corpo e espantar o frio.
Não há uma regra de conduta pré-estabelecida para um filó. No entanto, quando se chega ao local onde vai ocorrer a festa, sempre haverá uma mesa grande e farta, de doces a salgados — e cada um que chega traz ainda mais comida e vinho. Algumas pessoas ficam sentadas e outras de pé, conversando em um tom de voz alto e gesticulando muito.
— Normalmente, a gente já entra cantando no filó. E depois é que começam os comes e bebes e continua a cantoria. Mas, na verdade, o filó só começa depois do primeiro copo de vinho — explica o agricultor Vanerlei Dedordi, 58, que é também integrante do Grupo de Filó Felice Personne.
No repertório, estão músicas folclóricas, transmitidas de geração em geração.
— Geralmente, procuramos cantar músicas da raiz italiana, que os nonnos cantavam, tudo em Talian, como Quel Massolin di Fiori e algumas nem tão antigas, mais recentes, La bella polenta e Mérica, Mérica.
Entre as favoritas, que as pessoas pedem bis e cantam com mais fervor, está La bella polenta, afirma Dedordi.
— Nós sempre começamos com Mérica, Mérica, que tem diversas versões, e fala da saga dos italianos. As pessoas também gostam muito e conhecem mais.
Depois da segunda ou terceira música, em meio a cantoria e a dança, mesmo em uma noite de inverno, era possível ouvir pessoas dizendo:
— Que calor!
— Espera que vou tirar o casaco!
— Gente, mas com esquentou, né?
O sentido do filó é reunir pessoas para comer, beber, cantar e dançar, enfim, para a comunhão. E não é que serve também para espantar o frio? A partir das múltiplas vozes, nem sempre harmônicas, em meio ao arranjo de acordeon e violão, tudo isso suscita risos e gargalhadas, contribuindo para aquecer a alma, revigorando os convivas para encarar o rigor do inverno no dia seguinte.
Milonga pampiana: convite a uma jornada interior
Se por um lado a festa regada a música, cantoria e dança torna o filó uma importante arma para encarar o frio. Por outro, parece haver uma profunda combinação entre o rigor do inverno e o rigor da milonga pampiana. Aqui, não se trata de encontrar uma alternativa para espantar o frio e, sim, aproveitar as sensações que esse som melancólico provoca para realizar um mergulho n'alma. E melancolia como uma percepção de doce tristeza que favorece o devaneio e a meditação.
É nesse sentido que se encaixa a milonga, sobretudo a pampiana, defendida e entoada pelo músico e compositor Lucio Yanel, 76. Segundo ele, é correto afirmar que há uma sintonia fina entre o frio e a milonga, mas há um entrave também.
— Para um músico não é bom o frio, porque demora muito a esquentar. E quando tu estás querendo esquentar, acabou o concerto — diz, em tom de brincadeira, explicando que até a afinação do instrumento é prejudicada nessa estação.
Afora esse duro obstáculo, o músico, de violão em punho durante toda a entrevista (concedida no Estúdio Alta Voz), explica como esse som intimista revela tanto sobre a alma particular, mas também da alma de um povo, sobretudo dos indígenas.
—A base fundamental é o sentimento — diz, em tom solene.
E prossegue:
— A parte do silêncio, da introspeção da gente, é o frio que convida pra isso. A uma solidão escolhida, que não é a solidão imposta. Então, a partir daí, tem uns sons que vão se construir para isso. Na mesma tessitura de uma milonga eu posso construir a parte aonde há um dia lindo, embora esteja frio, mas a alma é convidada a uma explosão de alegria que não se sabe de onde vem, mas é do fundo da alma.
Ao mesmo tempo em que Yanel dialoga com palavras o faz por meio da música, dedilhando o violão:
— A solidão pampiana não é a mesma da solidão urbana. Na solidão pampiana você se dedica a construir coisas e, na solidão urbana, se dedica a relembrar coisas, porque não tem nada o que construir no meio de tantos blocos de cimento. Então, você só lembra dos momentos de sonhar e de esperança, que tinha na solidão pampiana.
Apesar de se dedicar à música instrumental, Yanel conduz o espectador a ouvir cada nota e cada acorde com atenção, mas também as pausas e os silêncios em meio às tessituras da composição.
— Quando toco melancolia, por exemplo... O homem pampiano entende tranquilamente esse som (milonga mais intimista) porque faz parte dos seus sentimentos. Mas quando vai chegando na parte mais montanhosa do Estado ou mais urbana, já se torna uma milonga mais alegre. Nós, os pelo-duros que viemos dos povos originários, dos indígenas, já somos mais introspectivos.
A partir dessa visão compartilhada por Yanel é impossível não criar imagens mentais que parecem ser emolduradas por esse som que flui do seu violão.
— É num galpão com fogo de chão, um trago de cana, um cusco deitado ali como se ouvisse a canção e ele entende... Isso é olhar para dentro, isso é encontrar consigo mesmo, isso é construir, em um mundo de ilusões e desesperança, um novo mundo. E o pampa te possibilita isso.
"Eu acho que a música deixa o frio mais confortável"
Dias atrás, quando a Serra encarava temperaturas abaixo de zero graus, cidades essencialmente turísticas como Gramado receberam visitantes motivados a sentir frio. Entre eles, o casal Carolina Homem e Fernando Oliveira. Em meio ao passeio trivial se encantaram com com o som de um violino que ressoava na área central.
— Eu acho que a música deixa o frio mais confortável e ainda mais quando a gente não está esperando escutar. É uma sensação de alegria, uma alegria completa assim, sabe, eu digo completa com o cenário, entendeu, escutar aquela música, tirar aquela foto com aquele chocolate, com aquele friozinho, então eu acho que é só um bônus a mais entendeu — explica o músico porto-alegrense Salatiel Pereira.
Ele diz que encontrou em Gramado um ambiente propício para ganhar a vida.
— Eu vim pra cá em 2019 pra gerar um recurso pra ir pra Londres (Inglaterra). Daí veio a pandemia e lockdown acabou me atrapalhando, só que eu reconheço que aqui é a Europa brasileira e o mesmo friozinho que a gente tem lá a gente pega um pouquinho aqui. A música no frio é um abraço. É tipo esquentar as orelhas (risos).
O casal, que parou para contemplar a música de Salatiel, também reconhece que uma boa música aquece corpo e alma.
— Além de Gramado ser lindo, acho que a música atrai, dá um aconchego, une as pessoas... — diz a empresária Carolina.
E Fernando, que é professor, complementa:
— Nada melhor do que encontrar um lindo artista pra aquecer nosso dia, né?
No final das contas, seja por meio de uma festa movida a música, dança, comes e bebes, seja emoldurado pelo som de um violino, sempre solene, não importa o cenário, ou ainda, através de um violonista que sabe extrair da melancolia o som que aquece a alma, tudo se resume à voz do coração. Se não bater na alma, não há sonoridade capaz de aplacar o rigor invernal — seja lá fora ou dentro de cada um.
Multimídia
De Manta e Cuia é um projeto multimídia realizado em parceria pela RBS TV, jornal Pioneiro e rádio Gaúcha Serra. As reportagens estão disponíveis também em Pioneiro em GZH.
Programe-se
Forqueta Cultural: Quem não conhece ainda como é um filó tem oportunidade no próximo domingo (4 de setembro). Haverá filó com o Grupo Felice Personne e participação do Grupo Nani, no Salão Paroquial de Forqueta, a partir das 15h.