Nas cozinhas não há segredos que não possam ser desvendados. E nem se tratam de mistérios envolvendo investigações de crimes perfeitos. Tratam-se de aromas, temperos e muito sabor. Porque cozinhar é quase um processo alquímico de acrescentar ingredientes com toques particulares para arrebatar corações. Pois a refeição não alimenta apenas o corpo, mas também a alma. E, afinal, qual é o sabor do inverno, que andou distante nos últimos dias e retomou com força neste final de semana?
Para investigar esse mistério, a reportagem do jornal Pioneiro, da RBSTV e da Rádio Gaúcha Serra mergulhou nas histórias de quem cozinha, de quem se debruça sobre o fogão, seja industrial, a gás ou mesmo a lenha, para compreender que sensações são depuradas a partir do paladar, que serve como uma porta de entrada para esse universo sem fim do sabor da comida da Serra gaúcha.
Há proporções muito equilibradas de pesquisa, reelaborando receitas, adaptando ingredientes, bem como são importantes as doses generosas de intuição, que parecem ser essenciais para despertar suspiros em quem prova essa comida. Da mesma forma que foi intuitiva a seleção dos personagens para esta reportagem, que privilegia as mulheres.
Não se trata de refutar a presença do homem dentro desse território sensível, pois há excelentes chefs, profissionais ou amadores espalhados pela Serra. Nem tampouco se trata de vender uma falsa ideia de que a cozinha é ambiente soberano das mulheres. Trata-se de uma escolha que dá voz a mulheres que contribuem para acalentar a alma de quem tem o privilégio de provar da sua comida.
Não importa o perfil de receita, que pode ser a tradicional italiana, com sopa de agnolini, galeto, massa, polenta e salada de radicci, como se pode encontrar nos lares de Vilma Maria Piccoli, de Marlene Maria Perottoni e de tantas outras senhoras que reafirmam diariamente a força da cultura gastronômica que os ancestrais trouxeram da Itália. Ou até mesmo de quem está abrindo um novo caminho para uma história recheada de ousadia ao fincar por estas terras a bandeira da comida vegana, como é o caso de Fabiane Debiasi Roncen e da filha Bárbara Debiasi Roncen, que deixaram de lado toda proteína animal, sempre tão venerada por aqui.
Em comum, elas revelam que o segredo não está na proporção dos ingredientes, nem mesmo na diversidade de pratos levados à mesa. A alegria delas está em ver as pessoas repetindo, servindo-se novamente, não por causa da gula, mas porque a sensação da primeira garfada é arrebatadora. Este é o sinal de que além do aconchego que uma refeição em família provoca, é por meio do paladar que se pode acessar a alma das pessoas.
E, dessa forma, conduzir a quem experimenta um prato recheado de amor a deliciosa sensação de ser levado às mais tenras memórias da infância, onde pode-se sentir novamente o aroma da essência do amor.
Memórias da infância
Nas construções mais antigas, até mesmo nas edificações urbanas encontradas pela Serra gaúcha, a cozinha é mais do que um espaço onde é preparado o alimento. A cozinha acaba sendo a sala de estar, o local para jogar conversa fora e também para tratar de assuntos sérios, de preferência sentados à mesa. Não poderia ser diferente na casa de Vilma Maria Piccoli, 86 anos. Nascida em Monte Bérico de Farroupilha, tratou de avisar que sua “história é comprida, viu” assim que recebeu a reportagem em casa.
Simpática, carinhosa e sorridente, é realmente boa de papo e, por mais que dê voltas aqui e ali, emendando assuntos diversos, a conversa sempre retoma no valor que atribui à família. E, mais ainda, revela com ternura que sua alegria reside em preparar uma boa refeição, de preferência junto ao fogão a lenha, para receber os filhos e netos.
– Quando eles vêm, uma ou duas vezes por semana, faço a polentinha que eu sei que eles gostam e faço o galeto no forninho, ou cozido com molho. E sopa de agnolini também. Porque sempre tenho um caldo pronto. E se eles quiserem ainda coloco num potinho e digo pra eles levarem pra casa, porque é prático, depois em casa eles podem descongelar e colocar o agnolini que fica pronto num instantinho – revela Vilma.
Esses saltos na linha do tempo, no discurso de Vilma, servem sempre para pontuar passagens importantes e que ficam evidentes a quem prova sua comida. Porque são recheados de memória afetiva, desde a infância:
– Eu uso muito o fogão a lenha, porque quando eu era criança nós só tínhamos fogão a lenha em casa.
O principal truque de Vilma ao usar o fogão a lenha, e que é essencial nos dias mais frios, sobretudo nesse inverno rigoroso, é deixar a comida sempre quentinha. O cardápio pode variar, mas sem perder de vista os ingredientes que reforçam o sabor de comida feita pela avó. Aliás, esse “sabor de comida de avó” poderia muito bem ser categorizado como patrimônio cultural imaterial da Serra.
Sempre que pode, é ao redor do fogão a lenha que Vilma realiza seu encanto gastronômico, preparando refeições que acalentam a alma e aquecem o corpo. O que torna a comida dela especial e única é o amor que ela transfere a cada um dos pratos. Amor que ela busca no passado a sua origem, ao se referir aos entes queridos que já se foram, mas também relaciona ao futuro, ao mencionar que as duas netas dela estão grávidas, a espera dos bisnetos que em breve provarão da comida da “bisa”.
Comida congelada que aquece o coração
Ainda sobre o amor em cada prato... Foi por meio do cuidado e zelo, frutos essenciais do amor, que Fabiane Debiasi Roncen, 43 anos, decidiu empreender. Tudo começou quando a filha, Bárbara, adotou a alimentação vegetariana como estilo de vida. Foi aí que Fabiane se viu diante de um tenso desafio: o que e como cozinhar para a filha e com quais ingredientes?
A partir desse questionamento, Fabiane iniciou uma imersiva busca por soluções, além de começar a cozinhar o feijão em duas panelas distintas. Por exemplo, numa delas contendo carne e noutra, apenas os temperos que sempre utilizou, mas sem proteína animal. Ela pesquisou esse amplo universo para entender não apenas como preparar alimentos, mas quis conhecer que filosofia de vida é essa.
Atualmente, a empresa Babi Veggie funciona da seguinte forma: Fabiane se dedica à elaboração dos pratos, enquanto Bárbara é a provadora oficial do sabor além de contribuir na divulgação por meio das redes sociais.
– Eu acho que meu papel principal foi na criação da marca. De como surgiu, porque eu virei vegetariana a uns cinco anos atrás. E a partir do meu vegetarianismo, a mãe começou a cozinhar mais coisas vegetarianas e entendeu que dá pra fazer uma rotina alimentar sem carne e, a partir disso, é que foi surgindo a ideia de trabalhar com comida, de criar uma marca e aí minha mãe também acabou virando vegetariana – conta Bárbara, 24, psicóloga.
Mas antes ainda de virar um negócio, a porção mãe, com instintos aflorados de proteção, amor e cuidado precisou entrar em cena. Porque, trabalhando fora, nem sempre a Bárbara conseguia se alimentar da melhor forma. Então, tomada pelo afeto de cozinhar para a filha para que ela tivesse uma refeição completa, Fabiane se lançou ao desafio de abraçar essa nova cartilha de aromas, sabores e temperos. Porque, como mãe, ela sabe que o valor de uma refeição caseira está na porção de amor depositada ali.
Essa imersão, que começou instintiva, tomou forma e ganha uma nova camada de sabores agora, na estação mais fria do ano, quando o senso comum diz que é necessária uma alimentação com mais sustância.
– Pesquisando, descobri a tal bolonhesa de lentilha e pensei: “vou tentar fazer”. Eu criei um prato que é uma lasanha de berinjela com esse molho bolonhesa feito com lentilha. Eu amo, sério (risos). A gente vai criando e vai aprendendo e vai mostrando às pessoas que dá para se alimentar bem e de forma saudável, mesmo sem carne. A soja e a lentilha, por exemplo, têm tanta proteína quanto a carne – ensina a mãe Fabiane.
Ao ser perguntada sobre qual seria a dica para encarar esse dias gelados que se avizinham, Fabiane respondeu:
– Pode ser uma sopa de legumes com feijão branco, que, além de engrossar o caldo, tem uma boa quantidade de proteína sem ser a animal. Eu digo, que além do desafio, é um baita aprendizado esse mundo vegano.
Mesa farta com aconchego e ternura
Há aconchego maior, ainda mais no inverno, do que um almoço em família? Na casa da dona Marlene Maria Perottoni é assim: fogão a lenha aceso, comida típica na mesa e todo mundo reunido em volta dela. Na mesa, como é bem tradicional aqui na Serra, está a sopa de agnolini, o tortéi com molho a bolonhesa, a polenta brustolada e não pode faltar o pinhão, feito na chapa do fogão a lenha, é claro.
– A comida assim, tu ainda está na cama e, antes de levantar, já pensa: “O que eu vou fazer hoje de comer?”. Daí vai se preparando, tem que inventar. E, às vezes, tu nem sabe o que fazer, aí tu vai inventando – sorri Marlene.
Apesar da mesma rotina, ela está sempre disposta a distribuir amor servindo uma mesa farta à família. Marlene acaba realizando essa tarefa não apenas como um simples ato de cozinhar, mas como uma missão que a satisfaz enquanto vê a família repetir mais uma vez.
– É muito bom cozinhar para a família, porque eles vão trabalhar, chegam com fome e a comida tá pronta. E daí a gente fica satisfeito que eles aceitam a comida e não reclamam muito... Às vezes, alguém reclama – brica Marlene.
Segundo ela, o que mais agrada ao paladar deles é agnoline, tortéi e churrasco.
– A gente lembra mesmo das avós, né, que a gente gostava muito, éramos pequenininhos, ia lá e a gente mexia nas panelas, elas não gostavam muito, ajudávamos a fazer o recheio (do agnolini). Eu gostava de comer eles crus e, até hoje, eu gosto de comer agnolini cru... E a comida tem isso, né, faz a gente lembrar de coisas...
Dona Marlene reafirma mais uma vez, nesta reportagem, que as sensações despertadas pelo paladar são quase mágicas, porque as papilas gustativas aguçam as memórias da infância, sempre com ternura. E dessa forma, compreendemos que sabores são esses que perfumam as cozinhas pela Serra afora e fazem até o forasteiro mais distante dizer que sentiu o corpo aquecido e a alma acolhida.
De Manta e Cuia
Parceria entre o jornal Pioneiro, a rádio Gaúcha Serra e a RBSTV.
No caderno Almanaque, além desta reportagem, cujo enfoque é refletir sobre o inverno e suas sensações despertadas pela visão, serão publicadas mais três matérias especiais, em julho, agosto e setembro.