Não canso de me espantar como as dificuldades têm potencial de engajamento e aproximação. Todo mundo tem uma história bem triste para contar sobre a tragédia das cidades invadidas pela enchentes nas últimas semanas, cada pessoa sensibiliza-se com algum aspecto em particular – eu fiquei extasiada, entre tantos relatos, ao ler sobre cemitérios destruídos, cujas lápides e caixões foram levados embora pelas águas. E também por imagens de casas caídas e sem telhado, mas com uma fotografia de família ainda intacta, presa em alguma parede. Cada um é tocado de um jeito.
Um crime brutal também costuma atrair atenção, bem como um acidente. Não faltam interessados em todos os relatos, nos vídeos da ocorrência, nas atualizações da situação dos envolvidos. Talvez por ser a forma mais primitiva da existência humana, a da luta pela sobrevivência.
Assim como o motorista que me conta sobre o atropelamento da mãe dele, 38 anos atrás, em uma manhã de cerração. Diz que todo dia, quando abre os olhos, lembra-se dela, sorridente e de bem com a vida, e como considera difícil superar uma partida sem a possibilidade sem se despedir. Confesso que consegui falar bem pouco, fiquei comovida e sem muitas palavras para consolá-lo. E imagino que, a essa altura, ele nem busque consolo: falar é a forma de colocar para fora o sentimento e, ao repetir a história muitas vezes e a desconhecidos, ela vai se transformando e, de alguma forma, traz a mãe para o presente.
É como festejar aniversário de alguém que já morreu. Se aníver é justamente a celebração do nascimento, como se faz para desaprender a comemorar a vida de alguém que nos deixou fisicamente? Tenho convicção de que não é preciso deixar de celebrar se mantivermos a energia da pessoa por perto. Na semana passada, depois de uma sucessão de encontros inusitados, que foram se desenrolando de forma inesperada, lembrei muito do Dudu, amigo que querido que se foi há um tempinho. Ele dizia que o responsável pelas maiores bobagens e maiores alegrias da vida de uma pessoa era o “já que”. Exemplificava: “já que saí de casa, vou ficar mais um pouquinho...”. E o pouquinho se estendia bastante – só para ficar num exemplo banal e publicável. Sempre ríamos muito dessa história e, por causa disso, consigo invocá-lo em momentos felizes da minha vida.
Ter a noção de que nossas percepções são apenas nossas e não representam o pensamento padrão também ajuda a nos aproximar das dores alheias. Ela tem um poder empatizante também. Ouvi com atenção a entrevista da Djamila Ribeiro no Podpah. Gosto muito da percepção de vida real que ela tem, já que transita com desenvoltura por contextos diferentes. Ela versava para desconstruir discursos meritocráticos dos gurus de redes sociais que pregam que as pessoas, para vencer na vida, precisam acordar mais cedo. Como se houvesse uma fórmula.
Djamila lembrou que a mãe, empregada doméstica assim como sua avó, acordava às 4h para trabalhar. Era superesforçada e nunca conseguiu mudar de vida. O ponto chave na fala dela é que existem desigualdades estruturais e pontos de partida muito diferentes. A generalização vira má-fé e não entender que são as oportunidades que diferenciam boa parte das pessoas é uma limitação grave no olhar para o mundo, uma vez que existem muitas realidades postas.
Existe alguma dor maior? Algum sofrimento maior? O que é pior perder? Não há uma resposta básica, óbvia ou absoluta. Normalmente, a dor maior é a que a gente sente, por mais que se solidarize com o sofrimento dos outros. E existem tantos, de tantas formas. São justamente eles que nos conectam de alguma maneira, nos engajam, nos fazem querer ajudar, transformar o contexto. Até porque, no final das contas, todo mundo está tentando o mesmo: dar conta de tudo, com os recursos disponíveis e a solidariedade de quem aparecer.