“Quem vai me julgar hoje, não vai deitar no caixão no meu lugar”. A frase poderia integrar a “escrita plana” da incensada escritora francesa Annie Ernaux, aquela que ganhou o Nobel de Literatura e, aos 82 anos, sendo reconhecida pela forma com que o particular dá sentido ao universal. Mas, não, ela é de Glória Maria, em uma das tantas citações que apareceram nos últimos dias, como forma de homenagear a jornalista, que era reconhecida tanto por ser precursora na profissão, quanto por ter uma vida pessoal livre e conectada com sua essência. Não sei qual das duas partes é a mais inspiradora.
Muitas vezes, é fundamental termos um norte — assisti à uma fala do Emicida em que destaca a importância de Glória Maria para fazê-lo acreditar que poderia ocupar um espaço na cultura, na tevê, no showbiz, porque ela tinha conseguido: “(a presença da Glória Maria) sempre foi forte porque eu não tinha um letramento racial a respeito da realidade do Brasil (...) e quando via a Glória Maria todo domingo na televisão tinha nela referência de possibilidade. Eu não podia desistir, porque ela dizia todo domingo que poderia vencer nesse lugar”.
Não é incomum o fato de precisarmos ver outros para nos reconhecermos ou até para lembrarmos quem somos. É triste constar que a falta de exemplo, de alguém para se espelhar/inspirar pode dificultar muito esse processo, pode não suscitar possibilidades na vida. Essa ideia encontra similaridades inclusive na natureza. Fiquei bem impressionada com uma reportagem do espanhol El País, publicada no final do ano passado, que trazia a ornitóloga Esther Sebastian falando sobre o corvo-do-havaí e uma reflexão sobre o desmatamento. A ave foi extinta na natureza há bastante tempo e só existe porque passou a ser criada em centros de reprodução. Só que, como eles não aprenderam a cantar, não podem ser soltos porque não conseguem avisar quando um predador se aproxima. No habitat natural, eles morrem todos.
E por que não aprendem a cantar? Porque ninguém canta para eles. Simples assim. A parte mais curiosa é que alguns sons, especialmente aqueles que parecem música, precisam ser ensinados aos pássaros. E, se não há alguém para ensiná-los, eles ficam em silêncio. Isso que pássaros são animais bastante astutos. Assim como nós, eles adquirem novas línguas por meio do aprendizado, transformam seus cantos, apresentam sotaques e evoluem em diversas direções cognitivas já há mais de 150 milhões de anos. Mas eles precisam imitar alguém para soltar a voz, precisam de uma inspiração. Essa é apenas uma das curiosidades que constam na obra A inteligência das aves, de Jennifer Ackerman — que também relata que eles têm noções de tempo e direção que têm ou a memória de longa duração.
A gente nem percebe, mas sempre tem alguém cantando de um jeito especial perto da gente, ressoando. Glória Maria escolheu viver do jeito dela e, talvez sem querer, acabou virando inspiração, possibilidade, materialização do lugar de fala. Viveu sua verdade e soube ir além das promessas vazias — pesquisa mostra que metas de ano novo, por exemplo, para metade das pessoas não passam do primeiro mês, porque não estão conectadas nem com o propósito, nem com o talento de cada um. Aí, sem ensino ou inspiração, sobra pouco: só resta o silêncio, daquele que nem paz consegue trazer.