Já dizia sábio Merlin, em uma citação na letra de Milonga de Manuel Flores, música do gaúcho Vitor Ramil: “Morrer é haver nascido.” É uma sentença. Sábio Merlin era conselheiro do Rei Arthur, da Távola Redonda, uma figura medieval. Parece que tinha capacitação para a função, pois a sentença é instigante. Ao abrirmos os olhos, começamos a morrer. O “marco zero” começa a ficar para trás e ingressamos em uma estrada de contornos imprecisos que, gradativamente, nos distancia do que queremos, ou interpõe obstáculos, expõe limitações ou impossibilidades que vão, pouco a pouco, desmantelando ilusões. Há quem diga que pagamos impostos para nascer e para morrer. É a versão econômica para a sentença do sábio Merlin. Desde o início, temos de lidar com pequenas mortes: a chupeta ou o peito da mãe retirado do recém-nascido, o brinquedo impossível que uma criança olha de longe, o amor não correspondido, sonhos e ideais atropelados pela vida real. Começa lá e avança ao longo da vida, expondo-nos a cenários e experiências que nos perturbam, a ponto de muitos sucumbirem ao desencanto em suas diversas formas, ainda cedo.
Morremos um pouco a cada dia, como agora, ao testemunhar um Estado que se desmancha diante da avalanche da chuva. São casas, sonhos, trabalho de vidas inteiras, vidas que se perdem, que ficam pelo caminho. Um cenário de perdas infinitas e desencantos, que só quem teve sabe o tamanho. Morremos bastante por esses dias. A vida, porém, tem outros lados e formas. O mesmo cenário escabroso e doloroso revela uma sucessão sem parar de cenas e iniciativas redentoras, de solidariedade, renascimentos e reconstruções. Não recompõem desencantos, nossas pequenas mortes de cada dia, mas são um alento. Assim é a vida, menos mal. Entre as tantas cenas, o salvamento do cavalo Caramelo do alto de um telhado, em Canoas, onde só restou a ele ficar em pé por quatro dias, tornou-se simbólico dessa tragédia. Caramelo resistiu com bravura e – muito importante – serenidade diante da situação. Teve de se equilibrar sem se descuidar em meio a um cenário de risco. Assim é a vida, afinal, não é? Mas foi salvo e sobreviveu, trazendo um afago na alma. Um símbolo da resistência, o cavalo é o animal-símbolo do Rio Grande. Uma sinalização, quem sabe, de que os gaúchos vão resistir a mais essa.
Caramelo é uma bala doce, que remete a uma lembrança boa dos tempos de criança, quando recém começávamos a morrer. Emprestou o nome ao cavalo, que resistiu. É um alento, entre desencantos e perdas que tornam real, a cada dia, a sentença do sábio Merlin. Morrer é haver nascido. Mas há também esses pequenos encantos.