Se a Copa da Alemanha, em 74, foi uma aula de Geopolítica, a Copa seguinte, na Argentina, tem muita história. Deu-se no auge da ditadura militar no país vizinho, com todos os nefastos ingredientes que uma clássica ditadura em países sul-americanos oferece, sob o comando do general argentino Jorge Rafael Videla. Ele assumiu o poder em 1976, em um golpe que destituiu a então presidente, Maria Estela Per0n, a Isabelita Peron, e ficou no comando do país até 1981, quando foi substituído por Roberto Viola, que deu sequência ao período de ditadura militar por mais dois anos, encerrado com a eleição de Raúl Alfonsin em 1983.
Na Copa, Videla estava lá, à frente do país. Lembro das imagens de sua figura taciturna na tribuna dos estádios nos jogos mais importantes. Foi um Copa em que fez muito frio, no rigor do inverno argentino. As pessoas andavam encolhidas, corpos enrijecidos. As seleções jogavam preferencialmente na defesa. Foi uma Copa emblematicamente fechada. Videla usava capote. César Luis Menotti, o técnico argentino, à beira do gramado, também. O capote e o inverno com seus dias cinzentos combinavam com aqueles tempos obscuros. Menotti tinha uma vasta cabeleira e fumava sem parar. Havia meio que um cenário de tango argentino para a Copa. De drama e tragédia. Eram outros tempos.
Foi uma Copa de muita fumaça e muita cerração também. Fumaça do cigarro de Menotti, ambiente enfumaçado da neblina incessante, dos vapores da respiração de todos os atores – jogadores, torcedores, profissionais envolvidos –, dos artefatos levados pelas torcidas para dentro dos estádios. Como no clássico cenário dos jogos na Argentina, havia muito papel nos gramados, muitos cânticos entoados.
Foi uma Copa bem no meio da pior ditadura argentina. Claro que foi instrumentalizada por Videla. Diferentemente do que ocorreu no Brasil, na Argentina, Videla morreu na prisão em 2013, cumprindo sentenças de prisão perpétua.
Foi uma Copa em que a grama se soltava nos campos onde a bola rolava, uma Copa embarrada. Recém colocada nos gramados para os jogos, os tufos levantavam a cada disputa. O campo ficava impraticável. O uniforme de todas as seleções exigia manga comprida e, no banco de reservas, quem ficava por ali tinha de se proteger com volumosas jaquetas. Da parte do Brasil, sintomaticamente, havia um capitão, Cláudio Coutinho, no comando técnico. O Brasil não perdeu nenhum jogo, mas ficou com o terceiro lugar. Ele convocou Chicão, um volante truculento, no lugar de Falcão. Bem no estilo da Copa. Coutinho disse que o Brasil foi "campeão moral". No mais rumoroso de todos os jogos, no acanhado estádio de Rosário, a Argentina precisava golear o Peru para desclassificar o Brasil e ir à final. E goleou por 6 a 0. A tudo isso, pude assistir, agora sim, com a tevê em cores um pouco mais popularizada, já mais acessível ao bolso do consumidor comum, e com um pouco mais de qualidade na imagem, enquanto me preparava, pela primeira vez vivendo em uma nova cidade, para prestar o então temido exame Vestibular.
Foi uma Copa carrancuda, a mais carrancuda de todas as Copas.
* Desde sábado (19/11), e durante toda a Copa do Mundo, o colunista Ciro Fabres está publicando em GZH Histórias de Copa, uma coletânea de crônicas e histórias embaladas em torno das Copas do Mundo, desde a primeira delas acompanhada pelo colunista, a de 1970, no México. Com a Copa do Qatar, são 14 Copas.