* Crônica publicada originalmente em 5 de julho de 2017.
A esta altura, em um país em que o apego à memória e à história é escasso e pouco cultivado, não muitos devem saber quem foi João Saldanha. Pois Saldanha era o que anos mais tarde se convencionou chamar de " faca na bota". No caso, não era exatamente faca, mas um revólver de estimação que manuseou algumas vezes em entreveros públicos nos quais se metia. Gaúcho de Alegrete, João Saldanha conseguiu a proeza de fazer a cidade onde também eu nasci antecipar em 45 anos um sentimento vivido hoje por Caxias do Sul: o sentimento de ter um de seus filhos como técnico da Seleção. Não é a primeira vez, portanto, que a cidade onde moro tem esse privilégio. Hoje, Tite, àquela época, Saldanha. Ele comandava um esquadrão formidável, que classificou o Brasil para a Copa de 1970, a Copa do tri, ganhando todos os jogos. Saldanha era o Tite, só que muito mais explosivo.
Corria 1969, ano de Eliminatórias e auge da ditadura militar, e Saldanha, além de técnico da Seleção, era comunista do histórico PCB, o Partidão. Assim, recebeu de um famoso amigo seu, Nelson Rodrigues, jornalista como ele, a alcunha de João Sem Medo. Faz todo sentido.
Segunda-feira agora (3 de julho de 2017), fez 100 anos que João Saldanha nasceu no Alegrete. João Sem Medo faz falta em tempos turvos como os nossos. Talvez fosse melhor dispensar o revólver, ou talvez não – essa discussão é interminável. Mas ele não silenciaria. Ficou célebre uma resposta sua ao então presidente da triste figura, general Emílio Médici, que queria ver o centroavante Dario, depois Dadá Maravilha, na Seleção." O presidente manda no ministério, na seleção mandou eu", desferiu Saldanha.
Os 100 anos do João Sem Medo chegaram no mesmo dia do aniversário de minha mãe, que se foi há quatro anos. A coincidência do calendário é forte o suficiente para destampar a memória, para recuperar marcas que aos poucos se apagam, pegadas por ruas alegretenses. Atravessava a cidade para comprar as figurinhas da adolescência em um bar na mesma calçada da casa onde Saldanha teria nascido. Aquela revelação despertava na gurizada admiração e uma reverência compartilhadas. Era um casarão na José Bonifácio, com varanda acima do nível da rua, que está lá até hoje. Saldanha nunca mais retornou ao Alegrete.
Circulava à época uma lenda urbana excitante: a de que, se o Brasil fosse campeão no México com Saldanha, ele levaria todos os jogadores da Seleção à cidade. Não foi possível conferir: como era provável por seus arroubos e destemores, ele saiu antes da Copa.
A mãe se foi, Saldanha se foi. A lição de não ter medo persiste. O Alegrete segue por lá. Se deixar, as marcas se apagam com o tempo. É preciso cuidar delas.
* Desde sábado (19/11), e durante toda a Copa do Mundo, o colunista Ciro Fabres publicará em GZH Histórias de Copa, uma coletânea de crônicas e histórias embaladas em torno das Copas do Mundo, desde a primeira delas acompanhada pelo colunista, a de 1970, no México. Com a Copa do Qatar, são 14 Copas.