Aquele jogo foi um cartão de apresentação para o menino de 9 anos, fascinado na frente da tevê. Brasil x Tchecoslováquia na Copa de 70, no México, o primeiro jogo transmitido ao vivo para o Brasil. Não podia ter jogo melhor para tudo começar, um roteiro de Copas a cada quatro anos. Brasil 4 a 1. Teve o primeiro gol de Copa, o gol de Petras, teve lance surpreendente e genial de Pelé, que quase fez gol do meio-campo, e teve aquele gol... Já no primeiro jogo, o gol mais bonito de Copa que vi até hoje, insuperável.
Está certo, teve outros dois gols ao longo das Copas que completam o pódio dos meus gols mais bonitos. O de Maradona, claro, também no México, na Copa de 86, em que ele fez fila na vitória da Argentina sobre a Inglaterra por 2 a 1. O outro é, talvez, o gol plasticamente mais bonito de todos, e foi na Copa do Brasil, em 2014: o gol de Van Persie para a Holanda na goleada de 5 a 1 contra a Espanha. Um voo de braços abertos e uma cabeçada que encobriu o goleiro.
Há, no entanto, outros elementos a compor os ingredientes para um gol se tornar o mais bonito, quenão exclusivamente a plástica. E aquele gol de Jairzinho contra a Tchecoeslováquia, o primeiro de Jair, que fez dois naquele jogo, o terceiro do Brasil, ah, igual a esse não tem. Àquela altura, com 9 anos, já era iniciado nos movimentos do futebol, no campinho de terra da esquina de casa, na General Vitorino com Doutor Lauro. Sempre que vou ao Alegrete, faço questão de passar por lá. Hoje tem um prédio naquele terreno, mas a imaginação relembra cada lance, cada jogo jogado ali.
Já havia sido apresentado aos dribles mais reverenciados no futebol, e já aplicava os meus. Tinha a "janelinha", quando a bola é rolada por entre as pernas de um jogador, que hoje em dia se chama "caneta"; a "meia-lua", quando se joga a bola de um lado do jogador adversário e se pega do outro, do qual o chamado "drible da vaca" é uma das possibilidades; e o movimento plasticamente mais bonito, o "balãozinho", também chamado "lençol", ou "chapéu", quando se encobre o adversário com a bola, e aquilo é um tanto constrangedor para quem toma o "chapéu". Já quem o aplica é elevado ao reconhecimento de bom jogador, ou jogador de algum futuro. Esse drible exige sensibilidade aguçada diante das possibilidades do ritmo e da sincronia de movimentos para que a bola passe no tempo certo, com o toque preciso, sobre a cabeça do jogador e seja amaciada antes que caia no chão. Também já havia aprendido que a "matada de bola" no peito era um sinal de classe e categoria. Eram lições iniciais e básicas do futebol, algumas delas aplicadas por Jairzinho nesse gol, assim revestido de elementos lúdicos, do lance bonito, no imaginário da criança. Além disso, Jairzinho era um jogador alegre, que conquistou a simpatia do pequeno torcedor, e ainda por cima fez gols em todos os jogos daquela Copa.
O gol teve um lançamento de Gerson, que descorbiu Jair livre na ponta direita, o "balãozinho" no goleiro Victor, a "matada de bola" no peito ao cair da bola, que assim foi depositada à frente para as melhores condições do arremate, permitindo antever o gol que iria acontecer. O ponta-direita deixou a bola picar à sua frente e chutou forte para o gol vazio. Quem ainda não viu, a tecnologia hoje oferece as ferramentas. É só buscar.
Aquele gol teve os elementos que estavam sendo ensinados como belos a uma criança de 9 anos no campinho da esquina, materializados na Copa, visto no mesmo instante em que acontecia, na primeira transmissão ao vivo de um jogo pela tevê. Foi um êxtase naquela noite de junho de 1970, diante da teve em preto & branco na sala lá de casa. Impossível não ser elevado à condição de gol mais bonito de todas as Copas. Até hoje. Um gol com a alma de uma criança.
* Desde sábado (19/11), e durante toda a Copa do Mundo, o colunista Ciro Fabres está publicando em GZH Histórias de Copa, uma coletânea de crônicas e histórias embaladas em torno das Copas do Mundo, desde a primeira delas acompanhada pelo colunista, a de 1970, no México. Com a Copa do Qatar, são 14 Copas.