Conta a lenda que um senhor feudal japonês quebrou um de seus vasos de cerâmica favoritos. Pediu a um artesão para tentar recompor a peça, mas o resultado ficou muito tosco, cheio de remendos que escondiam a beleza da cerâmica. Contudo, outro artesão teve a ideia de misturar ouro em pós numa resina delicada e colar cada pedacinho quebrado formando então fios dourados onde antes havia as rupturas e trincas.
Tal técnica milenar hoje tem o nome de ‘kintsugi’, ou ‘carpintaria de ouro’, e os objetos reparados com esse método inclusive passam a ser ainda mais apreciados do que antes de quebrar. A arte até se tornou uma metáfora, uma filosofia de vida que nos leva a pensar sobre rompimentos, adversidades, separações — e suas cicatrizes e costuras posteriores — de uma forma mais positiva.
Estou de férias e escrevi esse texto bem antes do resultado do primeiro turno das eleições. Seja lá quem foram os vencedores ou os candidatos que agora seguem para o segundo turno, é inegável que a tal festa da democracia vai acabar em fratura exposta. A radicalização de certas candidaturas foi escalonando de modo preocupante nos últimos tempos, e o que mais me deixa indignada é que tudo se resume a ‘quem diz’ e não exatamente ao que se diz, ou ‘quem faz’ e não exatamente o que é feito. Diante disso, pessoas de bom senso assistem lívidas a um festival de incoerência, imaturidade, dissimulação e irresponsabilidade.
Não sei exatamente o que será necessário para reunificar esse país e retomarmos qualquer tipo de convivência civilizada entre os diferentes. Pensando na metáfora do ‘kintsugi’, há de se ter resina (que seriam as leis e as instituições, elementos fortes e constantes) e uma boa dose de ouro, e aqui penso em Aristóteles e sua doutrina do meio-termo, também chamada de “meio dourado”. Segundo o filósofo grego, a virtude reside na média ponderada dos fatos, ou seja, entre dois extremos, entre a falta e o excesso, a prática do não-extremismo é o único caminho para a harmonia e para a felicidade.
Quando tudo parece ter virado nas eleições e nos debates políticos um voto “contra” alguma coisa, em vez de “a favor” de algo, é óbvio que nossa cerâmica simbólica acabaria partida em vários pedaços. Nunca precisamos tanto daquelas pessoas que se mantêm alheias às paixões e às idolatrias políticas e se limitam aos fatos como são, justos ou injustos, benéficos ou maléficos à sociedade. Pode ser que o tão espezinhado “isentão” acabe se tornando fundamental para tentar juntar os cacos e preencher as fraturas. Tomara que haja resina e ouro suficientes para o ‘kintsugi’ e quem sabe sairmos melhores de tudo isso.