Começo a escrever esse texto e uma libélula me visita. O dia está quente e ela entra em busca de água. Uma tragédia anunciada, entra pela janela e não consegue mais voltar para fora. Está presa na transparência invisível que o vidro gera. Uma transparência violenta, pois ela se debate desesperadamente. Acompanho seu sofrimento, não sem uma certa angústia, e penso em Angélica, Marielli, Maria da Penha, Jussara, Justina, Mariana, Lurdes, Cristina e tantas, tantas outras mulheres vítimas de violência.
Imagine o dia em que as mulheres puderem andar pelas ruas sem medo de serem importunadas, assediadas, estupradas ou arrastadas com metade do corpo para fora do carro. Imagine o dia em que, quando isso acontecer, uma sociedade inteira se levantará e exigirá justiça. Imagine o dia em que as mulheres poderão se sentir seguras estejam onde estiverem, seja dentro de casa, no trabalho, na rua. Fazendo o que quiserem, do modo que desejarem. Imagine o dia em que a violência contra a mulher possa, de fato, causar espanto e vergonha. Imagine o dia em que a violência contra o feminino deixe de ser minimizada e normalizada.
Não, a libélula não me acompanhou durante o tempo em que escrevi esse texto. Não é possível ficar imóvel quando um outro precisa de ajuda. Sim, é nos detalhes que nos revelamos. Quando um outro sofre, grita por socorro, se debate contra a transparência, buscando dar visibilidade para a sua dor, seja ele um inseto, um animal ou uma pessoa, ser omisso expõe a nossa desumanidade. Expõe a hipocrisia que somos. A omissão alimenta a invisibilidade e é nesse contexto em que as maiores atrocidades são praticadas.
Se não é fácil ser homem, é muito mais difícil ser “Angélica”. Uma hora ela é arrastada, noutra é atropelada. Especulações são levantadas sobre ela, assim como sobre qualquer mulher vítima de violência. Nesse contexto, não importa a condição social, econômica ou familiar. Mas querem nos fazer acreditar que “mulheres de família” não sofreriam esse tipo de situação. O que é uma grande mentira. Dados da ONU apontam que uma em cada três mulheres sofreu ou sofrerá algum tipo de violência de gênero ao longo da sua vida, independente da classe social ou raça.
É preciso quebrar a maldição de não sermos escutadas.
A cada mulher que morre vítima de violência o grito precisa ser mais forte e a fogueira precisa ser acesa. Não para queimar os homens ou as instituições, como fizeram com nossas ancestrais, mas para que possamos nos tornar lanternas luminosas na escuridão, iluminando nosso próprio caminho e os passos de todas as outras.
Que esse dia que tanto imaginamos inicie hoje.
Por que ainda acontece?
A coisa está por toda parte. Às vezes somos atingidas de leve: são insultos, assédios, ameaças. Falas e comportamentos que demonstram que não estamos seguras, nem somos tão livres quanto imaginamos. Às vezes, somos atingidas com força: é o estupro, a violência de todo tipo, o feminicídio.
As respostas para esse questionamento vêm sendo buscadas há décadas. Tentar entender o que se passa dentro do sujeito que pratica um ato de violência de gênero, bem como a sociedade que ajuda a perpetrar o machismo estrutural, são pontos ainda cegos dentro desta transparência de informações. Muito se tem avançado, é fato, e não sem o enfrentamento à misoginia e ao descaso.
É preciso compreender que os crimes de gênero estão além de desvios do comportamento. São sustentados por um repertório social que proporciona respeito aos homens e medo às mulheres. Medo e culpa, que neste contexto, são sentimentos construídos a partir da legitimação do poder de gênero. Isso nos ajuda a entender práticas de senso comum, como questionar a mulher sobre o que ela teria feito de errado para merecer apanhar. Nosso corpo é invadido de muitas formas e cada vez ele parece ser menos nosso.
A valoração do corpo feminino
Uma das líderes do Núcleo Caxias do Sul do Grupo Mulheres do Brasil, Celiz Frizzo, que está organizando a caminhada pelo Fim da Violência Contra Mulheres e Meninas, que ocorre neste domingo, a partir das 9h, lembra outro aspecto fundamental que sustenta a masculinidade hegemônica, que é a de como o corpo feminino é valorado dentro das relações. Estamos falando da objetificação do corpo da mulher. Para ela, a base das organizações sociais traz em seu bojo o patriarcalismo, espaço simbólico e concreto, em que a dominação masculina subjuga as mulheres, objetificando-as.
Daí, também, podemos pensar sobre a ideia patriarcal da mulher ser objeto sexual e a importância de se perceber que no feminino, o erotismo passa pelo corpo-objeto. Um corpo aos pedaços. O que chama atenção numa mulher são partes de seu corpo. Nunca o corpo como um topo. E, se isso acontece, a que preço? Quantas dietas para se enquadrar no corpo padrão, quantas cirurgias plásticas para atingir a tal juventude tão desejada? Quanta angústia e ansiedade comporta um corpo subjugado? Isso sem falar em outras características que demoram a ser percebidas ou raramente são buscadas, como ser inteligente, bem-humorada, apaixonada pelo trabalho. Falar sobre isso é difícil. É mais fácil relativizar os fatos. Dói menos.
No entanto, sair do senso comum construído a partir da ideia de uma sociedade positiva, que só olha para o lado bom das coisas, é compreender que assombrar-se com o humano (desumano) que nos habita, nos faz (re)pensar nossas posições e pensamentos. A recorrência dos crimes de gênero reforça valores morais que estão centrados em uma contradição social. Um paradoxo, é verdade, pois ao mesmo tempo em que essa mesma sociedade reconhece a liberdade da mulher, veicula discursos de domínio do corpo feminino como parte do exercício da masculinidade.
Se numa guerra o inimigo é declarado, na violência de gênero eles são o marido, o namorado, o amigo, o amigo do amigo, homens na rua, numa festa.
A partir da psicanálise, é possível pensar que há uma fantasia de que o corpo da mulher é parte do território masculino, e assim sendo, é mantida por um repertório que regula esse tipo de violência por diversas maneiras perversas de punição, entre elas, o feminicídio.
A psicanalista Juliana Lang Lima fala da necessidade de desconstruir discursos que relativizam a violência contra a mulher. Ela lembra da expressão “mulher gosta de apanhar”. Uma frase que homens e mulheres costumam dizer para se referir ao fato de que uma mulher que sofre violência, faz a denúncia e depois a retira, sem compreender o quanto é complexo desvencilhar-se de uma relação abusiva. Quando proferimos discursos como esse achatamos os fatos e corroboramos para a invisibilidade. Por isso, o machismo estrutural está em homens e mulheres, de todas as classes e raças.
Sociedade precisa se unir em torno do debate
Conseguir combater a violência de gênero é um desafio que se coloca à sociedade como um todo. Homens e mulheres precisam se unir em torno desse debate. Em 2019, por iniciativa da plataforma Papo de Homem, que produz conteúdos sobre masculinidades, o documentário O silêncio dos homens (disponível no YouTube) foi lançado.
A obra se propõe a provocar reflexões sobre o modelo masculino que se impõe sobre os meninos e homens e o quanto isso acaba por silenciá-los em suas angústias e afastá-los da possibilidade de compreender as relações entre homens e mulheres de modo mais equânime. Sabemos que ser homem não é fácil. O machismo faz mal para elas, mas também para eles. A cultura patriarcal exige do homem um comportamento estereotipado, e o sujeito que se dá conta disso e tenta se desconstruir é discriminado, insultado, vira chacota entre os amigos.
O documentário nasceu de uma pesquisa que mostra, por exemplo, que sete entre 10 homens não conversam com os amigos sobre medos e dúvidas.
As raízes seculares da violência
A reflexão leva de volta à tradição familiar brasileira. Há em nossas raízes a violência contra a mulher e ela vem de longa data. Ela é parte da cultura patriarcal herdada de uma sociedade excludente e extremamente controladora e disciplinadora.
A psicóloga e pesquisadora da UNB Valeska Zanello, no livro Saúde Mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação, ajuda a compreender o quanto violência e misoginia vêm se entrelaçando com o decorrer dos séculos. E, se hoje podemos falar abertamente sobre isso, não foi sem estudo e coragem.
Para Valeska, no contexto patriarcal, o sacrifício da mulher é visto como um ato disciplinador, que resgata a moral do homem, pois o corpo feminino traz as marcas do poder masculino nas relações amorosas e sua execução está simbolicamente naturalizada como resultado da imposição da lógica do homem. A mulher sofre a violência de gênero não por quem ela é, mas pelo que ela é.
De certa forma, é como se a sociedade abrandasse essa violência, procurando outras formas de responsabilização, sem necessariamente ser nomeado como violência contra a mulher.
A psicanalista Juliana Lang Lima lembra de Freud no texto que fala sobre o repúdio ao feminino. É como se o masculino tivesse um temor com relação à ideia da passividade, afinal, o patriarcalismo espera que o homem seja viril, forte, competente, de sucesso e que apresente uma performance invejável. Daí o feminino assusta, pois contrapõe essa ideia. Talvez devêssemos tentar avançar nesse diálogo. É preciso que possamos conciliar o masculino e o feminino, suportar as ambivalências que nos habitam para que possamos sonhar com outra forma de viver, sem violência.