Com o feriado do ano novo lunar recém-terminado, os moradores cada vez mais abastados de Seul vasculharam as prateleiras por caixas de iguarias. Entre suas opções favoritas: vinhos importados, cortes especiais de carne, chás de ervas raras. E a carne enlatada Spam.
Sim, Spam. Nos Estados Unidos, o produto gelatinoso de carne nas conhecidas latas azuis e amarelas conquistou lugar garantido em despensas econômicas, piadas culinárias e pratos moderninhos sem jamais perder sua reputação de baixa renda. Entretanto, na Coreia do Sul, região economicamente vibrante, os tijolos rosados de paleta de porco e presunto adquiriram um pouco de glamour - conforme ganharam espaço na afeição das pessoas.
- Aqui, o Spam é um presente de classe que você pode oferecer a amigos durante o feriado - declarou Im So-ra, vendedora da luxuosa loja de departamentos Lotte, no centro de Seul, que exibia orgulhosamente caixas elegantes contendo latas de Spam.
A Coreia do Sul se tornou a maior consumidora de Spam fora dos Estados Unidos, de acordo com o produtor local. E isso não inclui as imitações que inundam o mercado.
Essa jornada do Spam, de excedente de paleta em Minnesota a centro da mesa de jantar sul-coreana, começou em uma época de privação - pegando carona com os militares americanos, durante a Guerra da Coreia, e tornando-se um luxo nos desesperados anos posteriores, quando as tropas dos EUA permaneceram na região para manter a paz.
- Os alimentos vendidos nos quartéis eram a única maneira de conseguirmos carne. O Spam era um luxo disponível somente para os ricos e bem relacionados - contou Kim Jong-sik, de 79 anos, veterano sul-coreano que ficou alocado em bases americanas na década de 1950.
Atualmente, é fácil esquecer a presença do Exército americano que durou décadas. A grande base militar no coração de Seul, a Capital, vem encolhendo em deferência à sensibilidade coreana - e até mesmo o famoso distrito de Itaewon, antigamente um labirinto de bares para soldados, é hoje uma elegante vizinhança com atmosfera internacional.
Contudo, o Spam segue onipresente, uma parte tão significativa da culinária local que muitos jovens não fazem ideia de sua origem - nem mesmo quando pedem um "ensopado militar", ou budaejjigae.
Restaurantes especializados no ensopado - uma mistura que muitas vezes junta Spam com o kimchi local - lotam ruelas urbanas. Mães coreanas apressadas adoram a conveniência de abrir uma lata e servir um desjejum de Spam frito com ovos, e uma mistura de pequenos cubos de Spam, kimchi azedo e arroz (tudo salteado e servido com um ovo por cima) é um lanche comum que muitas coreanas exigem quando estão grávidas.
E então há as caixas de presente, que ajudaram a aumentar em quatro vezes as vendas do Spam na Coreia do Sul na última década, atingindo quase 20 mil toneladas, ou US$235 milhões, no ano passado. O produtor local, CJ Cheil Jedang, disse ter lançado 1,6 milhão de caixas apenas neste feriado, vangloriando-se de conteúdos que deixam os coreanos "cheios de sorrisos".
Ainda não se realizou uma comparação exata com as vendas americanas. Segundo uma porta-voz da Hormel, o fabricante nos EUA, a empresa não relata vendas de produtos individuais, mas apontou que o Spam continua sendo um "marco culinário de alta qualidade, feito com carne de porco 100% pura e presunto, que o mundo passou a conhecer e amar".
Pode até ser, mas George H. Lewis, um sociólogo da University of the Pacific, sugeriu, em um artigo de 2000 na revista "Journal of Popular Culture", que o Spam conquistou seu status "mais alto" na Coreia do Sul. Aqui, ele observou, o produto não só superou a Coca-Cola e o Kentucky Fried Chicken em status, mas é dado como presente "em ocasiões especiais, onde se deseja prestar uma homenagem e mostrar respeito".
Por um tempo, crianças coreanas até mesmo consideravam descolado ter fatias fritas de Spam em suas lancheiras. Seu prestígio ficou óbvio em um recente comercial com astros do cinema e da televisão. Nele, um homem faz um convite para um jantar romântico que sua exigente namorada não pode recusar: que tal fatias de Spam frito e uma tigela de arroz fumegante?
Isso não significa dizer que todos aqui são loucos por Spam: em uma época em que não falta carne fresca e alimentos orgânicos se tornaram quase uma obsessão nacional, alguns sul-coreanos mais ricos torcem seus narizes para o produto enlatado (que, a propósito, emprestou seu nome aos irritantes e-mails massivos conhecidos como spam).
Até agora, porém, o caso de amor da Coreia do Sul com a antiga comida militar tem sido duradouro. O Spam cresceu em popularidade mesmo nos anos de uma gradual retirada das forças americanas da Coreia do Sul, e mesmo quando protestos estudantis anti-americanos abalaram o país, alguns deles detonados pela presença militar estrangeira.
Então o que explica o poder de permanência?
- O Spam mantém uma aura mítica sobre o mercado coreano, por razões que escapam a muitos. Dada a introdução do Spam à Coreia do Sul através do Exército americano, ele desfrutou de uma associação com prosperidade e nutrição durante um período anterior - afirmou Koo Se-woong, professor de Estudos Coreanos no MacMillan Center for International and Area Studies, da Yale University.
Kim, o veterano do Exército, é da geração que se lembra em primeira mão da dolorosa origem da popularidade do produto.
- Naqueles anos, as crianças reviravam as lixeiras do exército dos EUA, coletando Spam, salsichas, hambúrgueres mordidos, bacon, pão ou qualquer coisa comestível e vendiam esses itens aos restaurantes - recordou ele.
O ensopado que veio a ser conhecido como budaejjigae nasceu dessa forma, com as pessoas limpando as sobras e começando a misturá-las, ou rações militares do mercado negro, com kimchi. O prato também é chamado de "Ensopado de Johnson", para homenagear o presidente Lyndon B. Johnson, que visitou em 1966 e prometeu manter o apoio econômico dos EUA.
Kim e sua esposa hoje comandam o Bada Sikdang, um dos restaurantes de budaejjigae mais populares em Seul. Mantém a assinatura emoldurada na parede de um antigo cliente famoso - o presidente Park Geun-hye .
Durante um almoço recente, o Bada estava cheio de coreanos jovens e bem vestidos. Sung Min-kyeong, uma decoradora de 35 anos jantando no restaurante de 14 mesas, disse não entender o que os americanos viam de tão bom no Spam sendo que eles adoram cachorros-quentes.
Alguns que não se consideram grandes fãs afirmaram que, mesmo não tendo vivido durante a guerra, possuem suas próprias boas lembranças do Spam como um elemento de sua infância.
Uma dessas pessoas, Seo Soo-kyung, de 40 anos, se surpreendeu quando seu cunhado americano a viu comprando Spam e lhe informou que aquilo era "comida barata para os moradores de rua nos EUA".
- Para mim, Spam era apenas um alimento saboroso e conveniente que minha mãe usava para cozinhar para nós. O incrível do Spam é que ele combina maravilhosamente bem com kimchi e arroz - explicou ela.
Centro da mesa
Comida enlatada dos Estados Unidos vira artigo de luxo na Coreia do Sul
A jornada do Spam, produto gelatinoso de carne, começou em época de privação da Guerra da Coreia
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