Um grupo de médicos que deveria ficar a postos para receber ligações do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Porto Alegre ignora escalas, deixa o local de trabalho no meio do expediente e submete pessoas que precisam de socorro a esperas angustiantes ao telefone, conforme revelado pelo Grupo de Investigação do Grupo RBS (GDI).
Mas não são apenas números numa tela que deixam de ser atendidos pelos médicos reguladores do Samu. Do outro lado da linha, há vidas em risco. E algumas não resistem ao tempo de espera.
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No dia 6 de junho, por exemplo, a central estadual em Porto Alegre deveria estar com sete médicos atendendo aos chamados. Mas, conforme um vídeo enviado pelo enfermeiro Cleiton Felix, que denunciou a situação ao GDI, a sala estava vazia. Foi a única vez em que esse tipo de situação foi flagrada durante os meses em que o GDI manteve contato com Felix, que trabalhou no Samu por 13 anos e pediu exoneração no final de junho.
No dia em questão, a única médica que chegou para dar expediente, Giordana Vargas Correa, que recebe R$ 8.200,02 mensais, deixou o posto por meia hora, enquanto os pedidos de socorro se acumulavam na espera. Comparando as informações de Felix ao relatório ao qual o GDI teve acesso, com todos os atendimentos prestados naquela madrugada, os dados confirmam: a médica parou de atender às 5h58min. E só voltou às 6h29min, após 31 minutos.
Na central, há monitores onde os chamados aparecem. Nestas telas, um ícone amarelo indica quem alguém precisando de socorro aguarda na linha. Em registro feito às 6h30min do mesmo dia, quando Giordana se ausentou, quatro ligações estavam penduradas.
Um desses casos era de Laura Amélia Martins Oliveira, moradora de Cruz Alta. Ela ligou para pedir atendimento à filha. A menina de três anos estava com resfriado e tremendo de frio. No momento em que a foto da tela foi tirada, eram 20 minutos de espera. Mas a demora foi o dobro disso, recorda a mãe:
— Liguei para o Samu porque minha filha estava com febre. Com 40ºC de febre, delirando e se tremendo de tanta febre. Era só uma mensagem de aguarde e a musiquinha. Fiquei de 40 minutos a uma hora na linha. Vi que não ia ter sucesso e simplesmente desliguei. Larguei tudo e saí correndo.
Sem retorno do serviço que deveria atender a população, Laura levou a filha por conta própria ao pronto socorro. Mas não foi só a ausência de meia hora que marcou o plantão da médica Giordana. Ela foi embora tendo cumprido apenas sete horas de um expediente que deveria ter durado 12 horas. Os relatórios obtidos pelo GDI mostram que ela iniciou a jornada de trabalho às 4h7min, indo embora às 11h7min.
O diretor do Departamento de Regulação Estadual na Secretaria Estadual de Saúde (SES-RS), Eduardo Elsade, afirmou que a pasta tem conhecimento do caso de Giordana. A SES-RS instalou uma comissão de sindicância após o contato do GDI para apurar este e outros casos.
Espera pode ser fatal
Se no caso de Laura ainda foi possível chegar ao hospital, o mesmo não ocorreu para Maria Isolete Pisaroglo, de São Leopoldo. No dia 12 de junho, a comerciante Fernanda Pisaroglo ligou pedindo atendimento para a mãe. A moradora do Vale do Sinos sofria com um câncer de pulmão em estágio avançado e sentia muita dor.
Conforme os dados da tela de atendimento compartilhadas pelo enfermeiro Cleiton Felix, Fernanda aguardou mais de 20 minutos na linha para conseguir uma ambulância para a mãe. Entre o início da ligação e a chegada do socorro, se passaram 48 minutos. Levada pela equipe de atendimento, Maria faleceu no hospital. Entre as causas do óbito, um infarto agudo do miocárdio.
— Essas gravações de espera foram se repetindo, uma atrás da outra. Foram uns 35 minutos de espera na linha — recorda Fernanda.
O presidente da Associação Brasileira de Resgate e Salvamento, Hilton de Souza Zeferino, explica que o tempo de resposta adequado, a nível mundial, deveria ficar entorno de cinco a 10 minutos.
— A partir daí nós começamos a ter o fator de criticidade, ou seja, quanto mais tempo eu levo para chegar na cena, maiores são os riscos para aquele paciente — diz Zeferino.
O GDI acompanhou os problemas de perto durante junho e julho, mas a situação persiste. Na metade de agosto, Lucas Gomes, 36 anos, precisou da ajuda do Samu. O morador de Gravataí, na Região Metropolitana, teve uma crise de pressão alta, dormência no lado esquerdo do corpo, e aguardou uma resposta do Samu durante duas horas e 30 minutos, sem sucesso:
— Para mim, foi horrível, né? Porque tu fica guardando o atendimento para saber o que precisa fazer. Eu preciso tomar mais remédio da pressão? Preciso ir no médico?
Lucas não achou outra alternativa e se automedicou.
— Dá uma agonia. Sei lá, uma tristeza, uma coisa assim. Porque a gente precisa do atendimento. A gente só espera que o pessoal trabalhe de forma correta — lamenta o morador de Gravataí.
Contrapontos
O coordenador do Samu no Estado, Jimmy Luis Herrera Espinoza, confirmou possíveis descumprimentos de horário.
O Conselho Regional de Medicina (Cremers) não quis comentar o caso.
O GDI também procurou os médicos Fabiane Andrade Vargas, Renan Rennó Schumann e Giordana Vargas Correa, mencionados nestas reportagens, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A doutora Fabiane Andrade Vargas pediu demissão na quarta-feira (23), conforme apurado pelo GDI.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) negou ter conhecimento do problema e instalou uma comissão de sindicância após o contato do GDI.
O Ministério da Saúde afirmou que irá fazer uma visita técnica à central estadual do Samu em Porto Alegre para verificar as informações trazidas pelo GDI.
Entre em contato com o GDI
Tem uma história que devemos ouvir ou sabe sobre alguma irregularidade? Entre em contato pelo e-mail gdi@gruporbs.com.br ou pelo WhatsApp (51) 99914-8529.
O que é preciso enviar?
Por favor, seja o mais específico possível. O que aconteceu e por que você acha que devemos acompanhar essa história? Documentos, áudios, vídeos, imagens e outras evidências podem ser enviados. A sua identidade não será publicada nas reportagens.
Qual é o foco das reportagens do GDI?
O GDI se dedica principalmente, mas não apenas, a verificar uso de dinheiro público, veracidade de declarações de autoridades e investigações em geral.
Veja a nota completa da SES-RS
"A SES não compactua com qualquer irregularidade na administração pública.
Este Gabinete da SES teve ciência sobre estes fatos na quarta-feira ao meio-dia e, de imediato, determinou a abertura de processo administrativo, que culminou com a assinatura da Portaria n. 802/2023-DGESP instaurando sindicância para apurar eventuais irregularidades já na quinta-feira, dia 24 de agosto, publicada nesta sexta-feira no Diário Oficial do Estado.
Na presença de Diretores da SES e de representante da Procuradoria-Geral do Estado, a Secretária da Saúde instalou a Comissão nesta sexta-feira, solicitando à Comissão a agilidade necessária ao deslinde do caso e a punição dos responsáveis em caso de comprovada irregularidade.
A Comissão já teve os trabalhos iniciados nesta sexta-feira (25), inclusive com oitiva de servidores e análise de documentos, e tem prazo de 30 dias para a conclusão dos trabalhos.
Ressalte-se que a SES, sempre que constata fato de irregularidade, seja por identificação própria ou por denúncia, adota as medidas cabíveis.
Reitera, ainda, que cumprimento da carga horária é dever do servidor público (Lei 10.098/94 - Estatuto do Servidor) e que o não cumprimento de carga horária é infração administrativa e sempre que identificado servidor, deve ser apurada e, se comprovada, punida.
Se comprovados os fatos, podem estes ser considerados crime e, como em todos os casos, terá encaminhamento ao Ministério Público.
A SES sempre se pauta pelo cumprimento de normas e toda e qualquer possível irregularidade será corrigida e, nos termos da lei, quando comprovada, punida.
Também conta com sistema de controle interno e, havendo necessidade, além de sindicâncias, podem ser realizadas ações internas e auditorias para qualificar e corrigir situações encontradas.
Assim, o encaminhamento foi e sempre será de corrigir erros, punir os responsáveis, quando identificados, com a total transparência que a SES sempre teve e se pauta."
Veja a nota completa do Ministério da Saúde
"O Ministério da Saúde informa que a Política de Atenção às Urgências estabelece uma quantidade de médicos por Central de Regulação de Urgência (CRU) conforme a cobertura populacional de cada localidade. É previsto que as centrais encaminhem, a cada seis meses, documentação que comprove o funcionamento do serviço, incluindo o Relatório Descritivo Analítico (RDA) que consta a escala vigente da equipe médica. Contudo, a gerência e fiscalização das escalas dos profissionais cabe aos gestores locais.
O incentivo federal para custeio anual repassado ao programa SAMU do Estado do Rio Grande do Sul é de R$ 64,5 milhões. Os critérios para manutenção de repasse está previsto pela portaria n° 3/2017. Qualquer irregularidade ou descumprimento dos critérios exigidos em portaria podem acarretar na suspensão dos repasses.
O quantitativo mínimo de profissionais para compor a sala de regulação médica do programa deve ser de 12 Médicos Reguladores/dia e 10 Médicos Reguladores/noite, conforme portaria. A unidade citada é habilitada para estimativa de cobertura populacional de 7 a 8 milhões de pessoas.
Em relação ao caso citado, o Ministério da Saúde vai realizar visita técnica à Central Estadual de Regulação do SAMU para verificar as informações trazidas pela reportagem e o funcionamento do programa SAMU na região."