A sistemática sob suspeita na Secretaria Municipal de Educação (Smed) fere princípios da administração pública, como impessoalidade, transparência, livre concorrência e eficiência. Durante meses, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) consultou documentos e ouviu servidores e ex-funcionários da Smed e de escolas que apontam indícios de que a apresentação de orçamentos pode ter sido fraudada ao longo de anos.
Há suspeitas de que empresas que se apresentavam como concorrentes eram dos mesmos sócios ou tinham parceria para figurar nas disputas junto à Smed, fazendo revezamento nas propostas. Outra situação é a de que processos abertos em 2021 por suposta necessidade das escolas foram usados para quitar serviços supostamente feitos anos atrás.
Para tentar esclarecer em que situações o recurso batizado de verba extra pode ser usado, o GDI solicitou à Smed a norma que prevê essa rubrica. A secretaria não soube informar como e quando ela foi criada nem exatamente qual a previsão para seu uso. A Procuradoria-Geral do Município (PGM) também não localizou normatização específica sobre a verba extra.
Apesar de parecer um recurso emergencial destinado a obras e serviços nos prédios das escolas, em uma listagem da própria Smed — que mostra gasto de R$ 8 milhões em cinco anos — consta liberação dessa verba para compras de geladeiras, fornos, para alimentação especial, para o projeto "Adote um escritor", para transporte de alunos, para aquisição de materiais pedagógicos e até pagamento de aluguéis.
Questionada sobre como a fiscalização dos serviços contratados era feita ao longo dos anos, a Smed informou que "não existia o hábito de serem emitidas ordens de início e termos de recebimento para as obras executadas por meio de verba extra".
O descontrole sobre a real necessidade de liberação desses valores e a correta execução das obras de reparo e manutenção nas escolas fez se acumularem suspeitas dentro da própria secretaria. Em setembro, dois gestores, também responsáveis por esses trâmites, foram afastados da Smed.
O então coordenador-geral de Administração e Serviços, Júlio César dos Passos, que é servidor concursado, foi colocado em férias e outro funcionário foi nomeado para a função dele. Ramiro Porto da Silva Tarragô, que há 16 anos trabalhava na Smed e era secretário-adjunto desde janeiro deste ano, também saiu da secretaria (foi exonerado em 10 de setembro). Assinaturas de Passos e Tarragô constam em solicitações de liberação de valores de verbas extras sob suspeita.
Em 22 de outubro, o GDI fez contato com Tarragô, que informou que estava lotado na Secretaria Municipal de Habitação. O GDI localizou no Diário Oficial do município nomeação dele como diretor-geral na pasta da Habitação. Nesta quarta-feira (3), Passos disse ao GDI que estava retornando de férias e assumindo função no setor de controle de câmeras de segurança de escolas, junto ao Centro de Comando Integrado da Capital.
As possíveis irregularidades vinham sendo percebidas pela equipe da secretária municipal da Educação, Janaína Audino, que levou o caso ao prefeito Sebastião Melo ainda em setembro. Depois disso, ocorreram os dois afastamentos.
Depois que o GDI pediu informações à Smed sobre o uso de verbas extras, em 28 de outubro foi publicada nota interna informando que seria instaurada "auditoria especial para análise e esclarecimento dos fatos".
Nesta quarta-feira (3), quando o GDI pediu manifestação oficial da secretaria sobre as suspeitas, a prefeitura emitiu nota oficial informando abertura de sindicância publicada em edição extra do Diário Oficial de Porto Alegre (leia comunicado da prefeitura abaixo).
Sobre Tarragô, a prefeitura também informou que "O servidor Ramiro Tarragô, cargo em comissão atuante na Smed desde 2005, foi afastado das atividades como adjunto da secretaria em setembro, para as apurações. Entre setembro e outubro, enquanto transcorria a apuração inicial, Ramiro foi lotado temporariamente no Gabinete do Prefeito, quando comunicou período de férias. No retorno, permaneceu em área administrativa, aguardando lotação para outro órgão. Foi designado para a Secretaria de Habitação e Regularizarão Fundiária. Com a abertura da auditoria especial na última semana, Ramiro foi exonerado na sexta-feira, 29."
Alteração dos procedimentos
A ocorrência de possíveis irregularidades fez a atual gestão da Smed emitir, em setembro, a Instrução Normativa 003/2021 para esclarecer procedimentos a serem adotados para obras e serviços em escolas.
Um dos itens, o art. 12 do capítulo V, indica que a nova orientação visa, entre outras coisas, minimizar, por exemplo, o risco de um mesmo empreiteiro encaminhar três orçamentos ou de os envolvidos combinarem preços a serem apresentados. Confira trecho do documento:
- Art. 12 — A Equipe Diretiva deve providenciar, no mínimo, três orçamentos, com o mesmo objeto, de empresas distintas, que estejam de acordo com os preços de mercado, sendo vedado:
- I - Que os orçamentos sejam encaminhados, à Equipe Diretiva, pela mesma empresa, devendo a Equipe Diretiva informar à SMED e aos órgãos competentes de controle e correição, sempre que forem identificadas suspeitas de irregularidades no processo de contratação; e
- II - A divulgação dos preços às empresas concorrentes e a negociação de valores.
O que a Smed diz sobre a verba extra:
- A verba extra é um valor encaminhado para as escolas, no limite de R$ 33 mil para obras e R$ 17,6 mil para serviços. Esses valores são encaminhados para as escolas somente quando o planejamento trimestral não tiver previsão orçamentária para a execução dos serviços.
- O recurso é da Smed, precisando passar por aprovação prévia da Secretaria da Fazenda.
Até setembro deste ano, a escola tinha a incumbência de apontar o problema para a Smed, que tomava as medidas necessárias para a realização dos serviços. Não existia um procedimento padronizado para esse fluxo. As solicitações podiam chegar, por exemplo, pelo telefone e pelo e-mail.
A Smed, por sua vez, poderia buscar os orçamentos por conta própria, fazendo a análise e a liberação dos serviços. Também não existia uma pacificação quanto à função de cada setor na liberação da verba. Dessa maneira, os processos tendiam a tramitar de maneiras diferentes, mesmo em casos semelhantes.
Com a Instrução Normativa 003/2021, buscou-se adotar um fluxo padrão para as solicitações de verba extra, dando mais transparência e eficiência para a gestão das obras e serviços. A norma definiu que as demandas devem partir, necessariamente, das escolas, sempre por meio de processo no Sistema Eletrônico de Informações (SEI). Os orçamentos devem ser encaminhados pelas escolas, com assessoria da Unidade de Obras da Smed, que define, com a equipe de engenharia, os quantitativos e os procedimentos técnicos necessários.
A instrução também delimita o que é obra e o que é serviço, para que os setores tenham clareza de quais são suas demandas. Do mesmo modo, há uma definição clara, na instrução, de quais setores devem fazer a aprovação técnica (Unidade de Obras) e orçamentária (Gestão Financeira e Ordenador de Despesas).
Além disso, antes da instrução normativa, não existia o hábito de serem emitidas ordens de início e termos de recebimento para as obras executadas por meio de verba extra. Esses documentos são importantes para que exista maior transparência em relação ao início e ao término das obras, garantindo que houve, efetivamente, fiscalização dos serviços pelo técnico responsável.
Contrapontos
O que diz Júlio César dos Passos
Ex-coordenador-geral de Administração e Serviços da Smed conversou com o GDI:
Era pelo senhor que passavam pedidos de verba extra?
As escolas pediam liberação de verba extra e a gente repassava para o financeiro ou a (Secretaria da) Fazenda para liberar a verba.
Tem casos abertos por vocês, sem a demanda da escola?
Não. A demanda surge na escola, a gente no administrativo passava. Ou a Unidade de Obras ia nas escolas, e as escolas faziam orçamento e encaminhavam para a gente. A gente conferia se a documentação estava ok e se estava dentro dos limites da dispensa de licitação.
Quem pedia os orçamentos para as empresas, as escolas ou a Smed?
Geralmente, eram as escolas. A Unidade de Obras eventualmente, se não me engano, pedia alguma coisa.
O senhor tinha relação mais próxima com alguma empresa, a Construcerto? Há e-mails do Renato (sócio da empresa) em que ele passa para o senhor três orçamentos: o dele e de outras duas empresas. Por que isso ocorria?
Quando acontecia isso é porque havia algum atraso no pagamento.
Mas era antes da contratação do serviço, antes da escolha da empresa?
Ele ia na escola e, eventualmente, para adiantar, levava lá na Smed, quando era serviço mais urgente.
O que ele levava na Smed?
Os orçamentos.
Os três, inclusive, dos concorrentes?
Não, trazia o dele.
Estou perguntando sobre e-mails em que ele enviava ao senhor os três orçamentos. Era comum isso?
Não, comum não. Era, eventualmente, quando era serviço urgente. Acho que ele pegava na própria escola os orçamentos, sei lá, e mandava para a gente agilizar a liberação de recurso.
Tem risco de serem orçamentos fraudados, desconhecidos pelas outras empresas?
Não posso colocar a mão no fogo por ninguém. Quando a gente passa o recurso para a escola, ela verifica, sabe se era aquele valor que efetivamente tinha sido o mais acessível.
Normalmente, o valor mais baixo era da Construcerto.
Ele estava há bastante tempo prestando serviço para as escolas. As escolas chamavam ele em função da agilidade e da documentação que ele tinha em dia. Essa era uma dificuldade que se tinha com empresas, em função da documentação. Como é serviço urgente, as escolas chamavam quem tinha documentação em dia.
O senhor não estranhou ele encaminhar os três orçamentos?
Não. Na verdade, eu não pedia orçamentos nem encaminhava empresa para escola nenhuma. Apenas solicitava os orçamentos para liberar.
Uma outra situação é a que envolve o pagamento em 2021 de serviços feitos anos atrás.
Pelo que me lembro foi só de uma escola.
É aceitável que se monte um processo este ano, como se a escola estivesse demandando neste momento o serviço, para pagar algo do passado?
Não é comum de acontecer.
Mas é aceitável? Não pode ser considerado fraude, já que é um processo com informações falsas?
Fraude não. O serviço foi prestado. Mas não me recordo desse caso, é tanto processo que passava por mim.
Essa montagem do processo passou pelo senhor. É correto?
Não, não é correto. O serviço foi prestado, seria problema se não tivesse sido prestado. Em um caso que me lembro a escola estava para ser interditada, era serviço urgente.
O senhor nunca suspeitou que houve manipulação de orçamentos ou preços combinados?
Passavam "N" processos por mim. Eu nem olhava que empresa era. Como o serviço era sempre urgente, a gente tratava de liberar o mais rápido possível.
O que disse Renato Behrends, da Construcerto:
O senhor recebeu este ano por obras antigas, feitas em meados de 2016?
Recebi este ano por obras antigas e falta algumas para receber.
O senhor fazia e não recebia na época por falta de dinheiro?
Existem os serviços emergenciais, com verba extra. As escolas não têm verba disponível para qualquer despesa extra. Aí estourou esgoto, teria que fazer verba extra, diário oficial, não sei o quê, é demorado, em torno de 30 dias. Mas não pode a escola esperar esses 30 dias. O que ocorria: eu resolvia, bancava, e depois recebia.
Quem ligava para o senhor resolver, a Smed ou as escolas?
A própria Smed. A secretaria ligava e pedia para eu ir lá resolver o problema. A gente fazia um orçamento bem justo, porque não estaria disputando teoricamente com ninguém, né, para não ficar oneroso nem para um nem para outro.
Mas ligavam só para o senhor, não teria concorrência?
Ligavam para outros, mas a maioria do pessoal não abraçava essa bronca. Tinha que ter algum capital em caixa para poder fazer isso até receber. Porque às vezes demorava, chegou até a seis meses. Mas era uma coisa que não tinha problema.
Qual setor da Smed ligava?
O setor de obras.
E como era seu contato com o Júlio Passos, da coordenação de serviços?
Contato porque ele o diretor administrativo, me ligava e perguntava: “Renato, tu pode ir lá quebrar mais esse galho para nós?” Eu ia lá olhava, tá tudo bem, vamos tocar bala. Ocorreu que até 2016 funcionava assim. Daí depois, começou a faltar dinheiro acho que por causa das obras da Copa. Começou a trancar, passou cinco, seis, sete meses e eu não recebia, daí disse que não ia mais poder fazer. Em 2018, ainda fiz uma, que era água jorrando numa escola de um cano de 32, era um feriado de 12 de outubro, coloquei meu pessoal todo a trabalhar no feriadão inteiro. Até hoje, não recebi.
Em qual escola?
Leocádia.
Depois de 2016 o senhor não recebeu mais atrasados?
Não, não pagaram mais, mudou o prefeito em 2017. Agora, mudou de novo.
Agora em 2021 o senhor voltou a receber valores de anos atrás. Como é feita a correção?
Recebi alguma coisa, mas ainda falta. Olha, eu faço uma correção diante do material que foi usado.
O senhor apresenta novo orçamento como se o serviço fosse agora?
Exatamente, de reforma.
O senhor não consta como sócio da Construcerto. Mas é responsável?
Sou funcionário, minha esposa é a dona.
Tem situações de e-mail enviados pelo senhor com o seu orçamento e os de outras duas empresas. O senhor enviava os três orçamentos, para o Júlio?
Não. Não sei como pode ter sido isso.
Tem e-mail com seu orçamento, da CF Engenharia e da San&Conti. O senhor não lembra de mandar?
Estranho. Conheço os donos e tudo, mas...Só se alguma coisa que eu mandei para ele e ele me retornou para dizer o teu está o valor mais baixo, só teria que adequar conforme está os outros. Tem que ser tudo escrito igual os orçamentos.
Mas então o Júlio teria mandado os orçamentos para o senhor pedindo reparo no seu orçamento? Isso é correto, combinação?
Não. Ele diz “o teu preço é o mais em conta, só que tem algum detalhe no teu que não está com a mesma linguagem dos demais”. Tem que ser tudo no mesmo padrão conforme a escola está pedindo. Aí no caso ele mandava para eu ver como estava os outros para eu fazer também, mas meu preço já estava mais baixo.
Acho que é algo que ele me mandou e eu mandei de volta.
O que diz Carlos Francisco da Rosa, da CF Engenharia:
"Desconheço (a situação de outra pessoa mandar orçamento em nome da empresa dele). Sobre o caso da Escola Migrantes, reforma de uma sala, eu tinha entregue um orçamento para a gestão de obras. Depois, me pediram outro orçamento, com menos serviços. Mas não lembro deste orçamento aí (o que foi enviado à Smed por Renato Behrends, da Construcerto). Vou estar dando serviço meu para terceiro? Acho errado isso aí."
O que diz Ramiro Porto da Silva Tarragô, ex-secretário-adjunto da Smed:
"Estou tranquilo (em relação a investigações da prefeitura), acho essa a forma mais correta de apurar. Dentro das nossas competências, fiz tudo que era correto. Na verdade, saí da Smed por incompatibilidade com a secretária (Janaína Audino). O princípio da verba extra é a autonomia da escola. O próprio diretor procurar as empresas e fazer orçamentos de acordo com a necessidade da escola. Orçamentos passavam pela equipe de engenharia, pessoas competentes, que viam os valores e tudo. De minha parte era o pagamento, o final. Estou bem tranquilo. Não sei desses processos (de pagamento de serviços antigos). Na sexta-feira (29), fui informado que estava exonerado."
Comunicado da prefeitura sobre as medidas adotadas
"Por determinação do prefeito Sebastião Melo, a Controladoria-Geral do Município abriu sindicância para apurar ocorrências na aplicação das verbas extras e nos repasses trimestrais para as escolas da rede municipal de ensino, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação (Smed). A medida está publicada em edição extra do Diário Oficial de Porto Alegre (Dopa) desta quarta-feira, 3, e faz parte de um conjunto de providências adotadas ao longo deste ano para buscar mais eficiência à aplicação dos recursos e fortalecer a gestão da secretaria.
Após auditoria ordinária abrangendo 2020 e 2021, realizada em julho, a Controladoria identificou indícios de irregularidades em processos de gastos. A Smed também realizou um levantamento de inconsistências e encaminhou denúncia para o órgão em setembro. A análise preliminar motivou a abertura de uma auditoria especial, publicada em 29 de outubro no Dopa, que deverá investigar problemas nos procedimentos administrativos. Já a sindicância, que é um processo sigiloso e terá prazo de 60 dias, irá verificar a atuação de servidores e agentes públicos.
Gestão - Desde o início da atual administração, a orientação foi elaborar novos fluxos administrativos, com foco na gestão da secretaria para melhorar a qualidade dos resultados do ensino em Porto Alegre. Conforme o novo secretário-adjunto da Smed, Mário de Lima, as possíveis irregularidades são referentes a série de contratações baseadas em orçamentos inconsistentes, combinadas com o aumento no valor das despesas nos últimos anos.
“O Município comunicou formalmente ao Ministério Público sobre o início da apuração, para que possa acompanhar. Sem qualquer julgamento prévio, a determinação é esclarecer os fatos, retroagindo aos últimos 10 anos, e criar mecanismos que fortaleçam a transparência e a correta aplicação dos recursos públicos”, afirmou.
No âmbito específico das verbas extras e repasses trimestrais, a Smed adotou um conjunto de providências a partir de setembro, quando efetivou a denúncia para a Controladoria: afastamento dos servidores envolvidos de áreas sensíveis, suspensão de contratações com empresas possivelmente envolvidas e publicação de Instrução Normativa estabelecendo fluxos para aumentar a transparência das verbas extras em obras e serviços.
O repasse trimestral é um recurso dedicado ao custeio ordinário das escolas, para despesas operacionais como telefonia, material de limpeza e insumos diversos. Já a verba extra existe para ser usada em situações extraordinárias, como consertos emergenciais de redes elétrica e hidráulica, telhado e portões, entre outras situações."