O corre-corre sob gritos de "acabou o oxigênio" e de "socorro", que irrompeu na manhã de 19 de março nos corredores do Hospital Municipal Lauro Reus, em Campo Bom, pode ter sido surpresa para quem teve de sepultar um parente morto naquele dia ou para quem viu no noticiário. Para funcionários e até alguns administradores, o que aconteceu foi o ápice de uma crise que envolve dívidas de cerca R$ 3 milhões com fornecedores e tributos, queixas quanto ao atendimento da população, substituição de terceirizados e reclamações de sobrecarga de trabalho e de falta de pessoal.
Qual foi o problema — se falta total de oxigênio por não abastecimento ou falha no sistema de distribuição — é um dado ainda sob investigação um mês depois do episódio. Mas, a partir de entrevistas com funcionários e ex-prestadores de serviço, de relatos dados à Polícia Civil e da análise de atas de reuniões extraordinárias do Conselho Municipal de Saúde (CMS), o Grupo de Investigação da RBS (GDI) apurou que o temor de falta de insumos, inclusive de oxigênio, e de queda na qualidade de serviços estava em pauta no sistema de saúde municipal desde janeiro.
Uma testemunha sustenta que a diretora administrativa do Lauro Reus, Melissa Fuhrmeister, vinha sendo alertada sobre a situação crítica de oxigênio, cujo consumo ocorria de forma cada vez mais rápida devido à demanda de internações pela covid-19. Existem anexadas ao inquérito mensagens de WhatsApp que comprovariam essas comunicações, que diriam que a reposição do produto devia ser feita com mais frequência.
A empresa responsável pelo sistema de manutenção do oxigênio havia deixado de prestar serviços ao hospital menos de uma semana antes do fato. A Associação Beneficente São Miguel (ABSM), que administra o Lauro Reus, optou por contratar um fornecedor que representou redução de cerca de R$ 10 mil nos custos.
Funcionários dizem que a direção queria contratar "conhecidos". De fato, a empresa nova já presta serviço no Hospital Beneficência Portuguesa, de Porto Alegre, também administrado pela ABSM. Os responsáveis por essa empresa não estavam no local na hora da pane.
Conforme informação da ABSM para o GDI, a nova contratada ainda estava fazendo reconhecimento do trabalho.
— Com relação à troca da prestação de serviço, estamos reanalisando todos os processos do hospital e fornecedores. O ponto principal é analisar custos/qualidade. Quanto à empresa terceirizada da manutenção, ela nem chegou praticamente a atuar, estava em fase de reconhecimento e planejamento de manutenção – confirma o presidente da ABSM, o oncologista Rafael França.
Quando os pacientes entubados da UTI teriam começado a sofrer falta de ar, o ex-responsável pela manutenção foi chamado às pressas para acudir. No telefonema, foram categóricos, segundo relatou ao GDI: "Acabou o oxigênio".
Depoimentos indicam cenário de desespero nos cerca de 30 minutos em que teria faltado ar para socorrer os pacientes. São descritas cenas de gente pulando muro, tentando quebrar cadeados. Equipamentos móveis foram trazidos de fora para atender aos enfermos. Horas depois, um caminhão fez abastecimento de oxigênio no hospital, conforme registrado em imagens que circularam em redes sociais.
Preocupação
Nas reuniões extraordinárias promovidas pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS) em janeiro e fevereiro, problemas do hospital — como queixas sobre o atendimento, sobrecarga de trabalho e falta de colchões e roupas — estiveram em pauta. Integram o conselho 24 entidades, incluindo membros da prefeitura, do hospital, vereadores e representantes da sociedade.
O presidente do órgão, Paulo Alberto Francisco, explica ao GDI que as reuniões fora de agenda normal foram chamadas devido a informações sobre a situação crítica no hospital.
Em 23 de fevereiro, durante discussão de dívidas e de falta de insumos, o secretário municipal de Saúde de Campo Bom, João Paulo Berkembrock, disse que "problemas de recursos não podem atrapalhar a assistência, pois representam perdas de vidas".
Na primeira reunião extraordinária, em 28 de janeiro (veja ata abaixo), dois representantes da ABSM, Rafael França e Ricardo Pigatto, garantiram que o déficit — à época citado como sendo de R$ 2 milhões — não iria interferir na qualidade do trabalho.
Conselheiros insistiram que não poderia haver prejuízo à população e cobraram ação da SMS. O secretário Berkembrock disse que havia recebido cobranças sobre os atendimentos no hospital e pediu que os dados fossem tratados com "franqueza".
Patrícia Bohn, também da SMS de Campo Bom, citou tratativas para resolução de problemas como a demora em atendimentos. A vereadora Gênifer Engers falou de queixas recebidas de profissionais sobre falta de pessoal, sobrecarga e falta de insumos. Ao final, o presidente do conselho pediu que na reunião seguinte fosse apresentado um "plano B" de recuperação das finanças.
O encontro ordinário de fevereiro não ocorreu. Nova sessão extraordinária foi em 23 de fevereiro (veja ata abaixo). A diretora administrativa do hospital informou déficit de R$ 2,7 milhões. Pigatto, da ABSM, disse que iriam pedir reequilíbrio financeiro do contrato à prefeitura e sugeriu que fosse contratada uma auditoria externa "independente, especializada, para dar transparência aos dados".
A presidência do conselho se mostrou surpresa com o fato de a situação do hospital ter chegado a tal ponto sem conhecimento do órgão. Pigatto garantiu que não faltariam recursos e mostrou preocupação com a possibilidade de a situação da ABSM ser exposta em público com "alardes".
Sobre a sugestão de auditoria externa, conselheiros se manifestaram com contrariedade. Houve entendimento de que a responsabilidade em fiscalizar os recursos aplicados era do poder público.
Patrícia Bohn, da SMS, esclareceu que a ABSM recebeu notificações, não só por questões contratuais, mas por "reclamações da população, rouparia, demora no atendimento, falta de médicos".
Em reunião ordinária de 9 de março, foram tratados assuntos gerais da área no combate à pandemia. Foram relatados consertos de equipamentos e acréscimo no número de respiradores, de camas e de bombas de infusão. Mesmo assim, a diretora Melissa Fuhrmeister descreveu um cenário nada tranquilo para um hospital de pequeno porte: "19 pacientes com covid-19 entubados (eram 10, um mês antes), emergência lotada com pacientes críticos, enfermagem com 20 técnicos contratados, profissionais sem experiência acabam se demitindo...".
Dez dias depois, ocorreram as seis mortes por suposta falta de oxigênio. Depois do fato, o conselho fez comunicação oficial ao Ministério Público sobre a situação do hospital. No documento, registrou dívida da casa de saúde em torno de R$ 3,5 milhões. A ABSM nega a quantia. Segundo França, o valor estaria hoje em cerca de R$ 2,2 milhões.
Contraponto
O que diz a diretora administrativa do Hospital Lauro Reus, Melissa Fuhrmeister
Questionada, a assessoria do hospital reenviou nota oficial:
"A instituição Hospital Lauro Reus informa que tem respondido a todas as solicitações levantadas pelo Ministério Público, Polícia Civil e Câmara de Vereadores, e continuará colaborando com as autoridades para que se esclareçam o mais rápido possível todos os fatos em investigação. Reforça que segue atendendo com o empenho e a dedicação de sempre às necessidades da população, tanto nos casos da covid-19 quanto às demais patologias, prestando total assistência e salvando vidas, que é o propósito de sua existência. Enfatiza também o respeito e a admiração por seus profissionais, fornecedores, colaboradores e gestores públicos e pela instituição, os quais têm mantido uma conduta voltada ao cuidado, à humanização e à assistência em saúde com a qualidade que a população de Campo Bom sempre reconheceu e merece."