Com 22 anos de serviços prestados à Secretaria Estadual da Saúde, Rosângela de Cássia Barbosa não se recorda de quando precisou contratar um empréstimo consignado pela primeira vez, mas garante que o desconto mensal na folha de pagamento virou rotina praticamente desde que que foi nomeada, em 2001. Nunca para adquirir um bem ou por mero impulso, mas para garantir a sobrevivência dela e de seus familiares.
— A gente entra em uma bola de neve, é um empréstimo atrás do outro. Acho que nunca terminei de pagar. Quando penso que vou terminar um, tenho que fazer outro para sobreviver — relata a assistente administrativa de 55 anos.
Rosângela já se acostumou a consultar a conta bancária ao final do mês e encontrar pouco mais de R$ 400 para passar os próximos 30 dias. Com salário básico de R$ 695,56, as gratificações relacionadas ao tempo de serviço fazem sua remuneração bruta ficar próxima dos R$ 3 mil, mas a maior parte é drenada pelo pagamento do IPE Saúde e de empréstimos contratados. Atualmente, são dois consignados descontados em folha e um terceiro, adquirido no Banrisul.
Na teoria, Rosângela deveria ser uma funcionária pública com dedicação exclusiva. Na prática, as dívidas intermináveis combinadas com o achatamento salarial a obrigaram a recorrer a um segundo emprego, à noite, como técnica em enfermagem. O resultado da sobrecarga apareceu no corpo: foi diagnosticada com desgaste na coluna, fascite na planta do pé e bursite.
Com o emprego paralelo e a ajuda da mãe, de 81 anos, Rosângela consegue sustentar a si própria e a filha de 17 anos, que um dia sonha em ver na faculdade. Mas sem qualquer conforto.
— Tem meses que já me sobraram menos de R$ 200 do salário. Hoje eu não consigo entrar em uma loja, comprar uma roupa ou um sapato, ou comprar um móvel para casa. Vivo para pagar as contas — desabafa.
A história de Rosângela retrata a realidade de milhares de servidores públicos estaduais que veem sua renda ser sugada pelos empréstimos consignados.
Boa parte dos casos tem origem ou foi agravada no período de 57 meses em que o salário foi pago de forma parcelada, entre 2015 e 2020. Via de regra, as operações não foram feitas por impulso ou desejo de adquirir um bem, mas para custear despesas com alimentação e saúde.
A dificuldade é acentuada pelo congelamento salarial imposto ao funcionalismo nos últimos anos. Para a maior parte das carreiras, são quase nove anos sem reajuste, à exceção da revisão geral de 6% concedida no ano passado.
Conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a defasagem atual, na comparação com a inflação, está em 57,6%. No mesmo período, o valor da cesta básica na região metropolitana de Porto Alegre saltou 126%, de R$ 342,62 para R$ 777,16.
De acordo com dados obtidos junto ao governo estadual via Lei de Acesso à Informação (LAI), quase metade do funcionalismo gaúcho está recorrendo a empréstimos consignados. São 54,8 mil das 117,5 mil matrículas (em alguns casos, um mesmo servidor possui mais de uma matrícula), o que representa 47% dos contracheques.
Entre inativos e pensionistas, um terço das matrículas possui consignados no nome. Os dados são relativos ao mês de junho, última folha que havia fechado quando o governo estadual respondeu ao pedido encaminhado via LAI.
O limite geral para o desconto de consignados dos servidores estaduais é de 30%, conforme decreto de 2004. No entanto, em muitos casos, quando está perto desse limite, o servidor opta por contratar um empréstimo diretamente com o banco, o que amplia o abatimento da sua remuneração mensal.
As dez instituições com mais consignados
No pedido encaminhado via Lei de Acesso à Informação, GZH também solicitou ao governo a relação das instituições financeiras com o maior número de consignados contratados pelos servidores.
- Banrisul
- Associação Gaúcha de Professores Técnicos de Ensino Agrícola (AGPTEA)
- Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Professores da Região Metropolitana de Porto Alegre (Educredi)
- Associação Beneficente dos Motoristas e Servidores Públicos (Abemose)
- Associação dos Servidores da Justiça do RS (ASJ)
- Círculo Operário Ferroviário do Rio Grande do Sul (COFRGS)
- Associação dos Funcionários Auxiliares da Fiscalização Estadual (Afafe)
- Sindicato dos Servidores Públicos Aposentados e Pensionistas do Estado do RS (Sinapers)
- Fundação dos Servidores Públicos Estaduais do RS (Fusepergs)
- Cooperativa de Crédito dos Servidores Públicos Estaduais e Municipais do Rio Grande do Sul (Servicoop)
Dificuldades começaram após início do atraso nos pagamentos
Com três décadas no serviço público estadual, a técnica em enfermagem Ana Lúcia Velasque Vargas já poderia estar aposentada há quatro anos. No entanto, precisa continuar trabalhando para conseguir arcar com todos os empréstimos consignados contratados nos últimos anos. Aos 60 anos, com salário básico de R$ 975, Ana Lúcia recebe uma gratificação de R$ 886 por permanecer em atividade.
Somando os avanços acumulados pelo tempo de trabalho, o rendimento bruto chega aos R$ 4,5 mil, mas quase tudo é destinado a pagar os 10 empréstimos ativos em seu contracheque e outro contratado diretamente no Banrisul. No final do mês, sobram apenas R$ 400 para sua sobrevivência. Se estivesse aposentada, perderia a gratificação de permanência e ficaria sem renda.
Ana Lúcia lembra que as dificuldades começaram no período em que o salário era pago com atraso.
— Ao mesmo tempo em que os salários eram parcelados e nós recebemos muito pouco, a oferta do empréstimo era muito alta. E aquilo meio que me seduziu. Tu imagina, eu estava sem dinheiro e o banco me ligava e oferecia R$ 5 mil. E isso vira uma bola de neve na tua vida, tu não tem mais consciência do que tu ganha e do que não ganha — relata.
Com a ajuda da Defensoria Pública, a servidora tenta conseguir, na Justiça, a limitação dos descontos. Enquanto isso, precisa lidar com a escassez de recursos.
— A gente vem para o trabalho, vê as pessoas comprando as coisas, um perfume, um esmalte, e não tem dinheiro pra nada — lamenta.
Com a mesma idade de Ana Lúcia, a professora Stela Maris Wasem Eifler teve de recorrer a um empréstimo em 2020, durante a pandemia de covid-19. Sem reajuste salarial, precisou dos recursos para custear despesas com a farmácia, visto que faz uso de medicação contínua.
Hoje, Stela acumula três consignados e, por consequência, teve de cortar viagens e atividades de lazer. Após alimentar por vários anos o sonho de ser professora, ela conta que, muitas vezes, chega a repensar a decisão em razão da desvalorização da carreira:
— Com 19 anos de Estado, tive que pedir empréstimo para poder pagar remédios e não ficar com o cartão de crédito no vermelho. Fazer uma dívida para pagar outra dívida. Me sinto humilhada.
Busca por atendimento psicológico é cada vez maior
Moradora de Canela, na Serra, a veterinária Maria da Graça Hübbe, 66 anos, conta que as dificuldades com os consignados começaram junto do atraso do pagamento dos salários. Na mesma época, teve de enfrentar um tratamento para o câncer de mama.
Com quatro consignados atualmente, ela estima que 50% da renda mensal seja destinada ao pagamento dos empréstimos. Graça conta que tentou aderir ao Desenrola, programa lançado pelo governo federal para ajudar quem está endividado, mas não se enquadrou na lista de beneficiários.
— Os consignados são uma armadilha. Na hora em que tu vai ao banco, pede e precisa daquilo, assina qualquer coisa. Eles usam da necessidade alheia para obter vantagens — protesta.
A situação de Graça é comum entre os servidores de nível superior do Estado, aponta Antonio Augusto Medeiros, que é presidente do Sintergs, sindicato que representa a categoria.
Segundo ele, a entidade tem sido cada vez mais procurada para auxiliar no atendimento psicológico. Em muitos casos, os relatos são de desmotivação no trabalho e desejo de abandonar o serviço público.
— A situação é desesperadora, principalmente para os aposentados, que têm dificuldade de honrar os compromissos. Eu mesmo tenho dois consignados. Infelizmente, o Estado está perdendo talentos, não consegue manter servidores por não dar perspectiva de futuro e manter esse ambiente meio depressivo — afirma Medeiros.
Redução do quadro alimenta desmotivação
Citadas na reportagem, a assistente administrativa Rosângela de Cássia Barbosa e a técnica de enfermagem Ana Lúcia Velasque Vargas fazem parte de um grupo de mais de 20 mil servidores ativos e inativos cujo salário básico é menor do que o mínimo nacional, de R$ 1.320. São funcionários de nível fundamental, nível médio, servidores de escolas e do quadro geral do Estado que, em muitos casos, precisam receber um completivo para que o rendimento chegue ao salário mínimo regional, atualmente em R$ 1.443,94.
Em busca de algum reajuste, esses funcionários já foram ouvidos em três audiências públicas na Assembleia Legislativa. Na mais recente, segunda-feira, pediram a criação de um vale-rancho de R$ 734. Conforme a Associação dos Técnicos Administrativos Públicos (Astap), o impacto seria de R$ 8 milhões mensais. Deputados de oposição se encarregaram de levar a ideia adiante, buscando apoio dos governistas.
Em nota, a Secretaria da Fazenda diz que os reajustes salariais “estão condicionados à capacidade financeira do Estado” e que, desde o ano passado, a administração voltou a atingir o limite prudencial da despesa com pessoal, conforme os critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Também destaca que “a consignação facultativa ocorre mediante autorização escrita do servidor ativo, inativo ou pensionista, sendo aplicada em folha de pagamento estadual”.
A economista do Dieese Anelise Manganelli lembra que, além da ausência de reposições, o salário do funcionalismo sofreu impacto com as reformas administrativa e previdenciária aprovadas entre 2019 e 2020. Em paralelo, cita um estudo que identificou redução de 18% no número de servidores do Executivo desde 2015, avaliando que isso contribui para um quadro de desmotivação geral.
— As pessoas vivem em um cenário de arrocho salarial, endividamento e sufocadas do ponto de vista financeiro, além de ter uma sobrecarga enorme para atender na ponta — analisa a economista