As lavouras de arroz em que foram resgatados 82 trabalhadores em condições análogas à escravidão, em Uruguaiana, são de responsabilidade de produtores rurais e de empresa de sementes. As investigações realizadas até o momento permitem aos órgãos fiscalizadores concluir que pelo menos uma parte do arroz plantado iria virar semente, e não alimento. Os nomes dos produtores e da indústria suspeita de envolvimento não são informados pelas autoridades, que preferem aprofundar a apuração do caso para firmar a identificação exata dos responsáveis.
— Existe uma relação entre o produtor rural e a empresa que explora a produção de sementes. Estamos avaliando para determinar a atribuição de cada um e o impacto disso no recrutamento do trabalhador. Ainda não confirmamos nomes para não atrapalhar a investigação. Não está bem determinado e precisamos ser precisos na hora de apontar responsabilidade — afirma o auditor fiscal do trabalho Vitor Ferreira, chefe do Setor de Inspeção do Trabalho em Uruguaiana.
As apurações de Ferreira, servidor de órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), são tocadas em regime de cooperação com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Polícia Federal (PF). No momento, para auxiliar na tarefa de identificação de responsabilidades, um dos focos é tomar depoimentos de trabalhadores resgatados, dos produtores rurais, da empresa e também do recrutador, que foi preso em flagrante na sexta-feira (10), data da operação de resgate. Ele pagou fiança e obteve liberdade provisória no dia seguinte.
Outra intenção dos investigadores é identificar os proprietários das estâncias Santa Adelaide e São Joaquim, onde os trabalhadores foram resgatados. Ferreira diz que essa identificação não necessariamente será de “absoluta relevância”, já que é considerada a possibilidade de ter ocorrido arrendamento da terra em pelo menos uma das fazendas.
— Imputamos a responsabilidade a quem explora a atividade econômica — diz o auditor.
O caso
No dia 10 de março, uma operação conjunta do MTE, MPT e PF resgatou 82 homens de trabalho em condição análoga à escravidão em Uruguaiana. Dentre os trabalhadores, havia 11 menores, com idades entre 14 e 17 anos. Eles atuavam em lavouras de arroz nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim e tinham de cortar o arroz vermelho, espécie invasora que se sobressai ao grão cultivado pelo tamanho e robustez que adquire.
Os trabalhadores tinham de providenciar os próprios equipamentos, e facas de serra eram improvisadas no corte do inço. Os que atuavam na aplicação de herbicida não contavam com equipamentos de proteção individual (EPIs). Há relatos de ausência de itens básicos, como botas e luvas. Ferreira diz que o enquadramento em condição análoga à escravidão ocorreu por conta das condições degradantes de trabalho.
— Nenhum deles dispunha de EPIs, o local de guarda da alimentação era precário, nas mochilas, o que por vezes fazia a comida azedar. Não tinha local de descanso ou sanitários — diz Ferreira.
Ele comenta que não foram verificadas, até o momento, situação de maus tratos, agressões ou trabalho forçado em troca de quitação de dívidas.
— Não temos esses relatos. A condição degradante se atém, neste caso, às restrições de água, de alimentação, à inobservância de regras mínimas de local de descanso e inexistência de banheiro — afirma o auditor.
Os trabalhadores resgatados eram residentes de Uruguaiana e de outros municípios da região. Os que moravam na cidade eram transportados diariamente de ônibus ou vans até a lavoura. Os que vinham de outras cidades ficavam instalados em um galpão que também foi considerado de situação precária.
— Quando fiscalizamos, havia seis pessoas no local. É um galpão sem janelas e com seis colchões dispostos um ao lado do outro — afirma Ferreira.
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Uruguaiana, Olibio Freitas diz que os homens que ficavam no alojamento “dividiam o espaço com os agrotóxicos”. No caso deles, era necessário caminhar cerca de 40 minutos para chegar ao local de laboração.
Volta pra casa e pagamento de seguro desemprego
Após o resgate, as autoridades providenciaram meios para que todos os trabalhadores voltassem para suas casas, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Eles terão direito a três parcelas do seguro desemprego, benefício que está sendo encaminhado. Para os que não dispõem de documentos, está sendo buscada a confecção com isenção de taxa junto ao Instituto-Geral de Perícias (IGP).
Depois de concluída a identificação dos responsáveis, virá a fase de calcular a verba rescisória dos trabalhadores. Eles não tinham registro de contrato de trabalho e não fizeram exame admissional, informa Ferreira. Por oito horas de laboração, recebiam a diária de R$ 100, que era paga de forma semanal.
Houve relatos de que homens que sofreram mal-estar em meio ao corte do inço recebiam apenas o valor proporcional às horas trabalhadas. Havia a possibilidade de atuar no corte do arroz vermelho de segunda a segunda, mas a disponibilidade era decidida pelo trabalhador.
— As verbas rescisórias são individuais. Se trabalhou um dia, vai ser um valor. Se trabalhou três meses, vai ser outro. Primeiro é preciso identificar a data de início desses trabalhadores, ver o quanto receberam, pegar o saldo entre o que receberam e o que deveria ter sido pago, fechar os vínculos e fazer as rescisórias. É um processo mais demorado em razão do grande número de trabalhadores, mas estamos providenciando — diz o procurador do Trabalho Hermano Martins Domingues, coordenador da Procuradoria do Trabalho em Uruguaiana.