O terceiro dia do Tribunal do Júri da boate Kiss, nesta sexta-feira (3), registrou a mais acalorada discussão desde o início dos trabalhos, envolvendo uma testemunha e o advogado Jean Severo, da defesa do réu Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda Gurizada Fandangueira. No Foro Central I, em Porto Alegre, também houve o depoimento de um profissional especializado em extintores de incêndio, de uma testemunha abonatória em favor do réu Marcelo de Jesus dos Santos e a manifestação de um ex-empregado da Kiss que, em quase três horas, deu detalhes sobre o incêndio, o resgate de vítimas e a colocação da espuma que pegou fogo no interior da casa no dia da tragédia. O sinistro ocorreu em 27 de janeiro de 2013, matando 242 pessoas e ferindo outras 636 em Santa Maria.
Pela manhã, logo no primeiro depoimento, houve a discussão entre o advogado Severo e a testemunha Daniel Rodrigues, gerente da loja que vendeu o artefato pirotécnico a Leão. Foi esse dispositivo, depois de aceso e erguido, que lançou fagulhas em direção à espuma do teto do palco, dando início ao trágico incêndio.
Severo se exaltou quando a testemunha se negou a confirmar se teve a loja fechada pela Polícia Civil em 2015. O comerciante afirmou que o estabelecimento não foi fechado. O advogado insistiu:
— Mas não houve nada, a Polícia Civil não esteve na sua loja?
Rodrigues alegou que não tinha o dever de responder.
— Tu tem que responder. Tu colocou esse rapaz (Luciano Bonilha Leão)
aqui (no banco dos réus). Ele colocou esse inocente aqui. Ele colocou — retrucou o advogado, aos gritos.
O juiz, então, ordenou que o advogado baixasse o tom de voz.
— Aqui não é competição de quem grita mais alto — advertiu o magistrado Orlando Faccini Neto, que preside o júri.
O ambiente se acalmou quando o juiz solicitou que o depoente respondesse, e ele esclareceu uma sanção sofrida em 2015. Disse ter recebido, na ocasião, uma mercadoria que não podia ser armazenada na loja e acabou alocada em uma garagem. Vizinhos denunciaram o ocorrido, e o produto foi devolvido para o fornecedor. O fato gerou intimação por armazenamento inadequado e multa para o estabelecimento.
Contudo, minutos depois, houve nova discussão após o juiz questionar uma nota fiscal apresentada na sessão. Esse suposto documento mostraria venda unitária de artefatos. O depoente disse que não tinha informações sobre essa suposta venda. Severo se exaltou novamente.
— É ilegal vender assim. Vamos deixar bem claro. É ilegal. A loja é ilegal. Tudo é ilegal. Tudo é ilegal. A loja é ilegal, explosivo ilegal — disse o advogado, com o tom de voz elevado e gesticulando bastante.
O juiz Orlando interviu e disse que, se episódio semelhante se repetisse, Severo “não ficaria mais no plenário”.
No seu depoimento, o gerente da loja de fogos de artifício disse que Leão, cliente de Severo, foi “avisado” de que o produto adquirido não poderia ser acionado em ambiente fechado. Ainda assim, relatou, o produtor da banda Gurizada Fandangueira teria decidido levar esse produto porque seu custo era inferior a outros de fogo frio, que pode ser aceso em locais fechados.
Na sequência, prestou depoimento Gianderson Machado, que fazia a manutenção de extintores na Kiss. Ele havia sido arrolado pelo Ministério Público para falar sobre as condições dos equipamentos, mas acabou excluído da condição de testemunha, tornando-se apenas informante (sem compromisso de dizer a verdade) do júri. Isso porque uma filha dele teria postado em redes sociais o desejo de que os réus “apodreçam na cadeia”. A desclassificação de Machado do status de testemunha ocorreu após a reclamação de uma bancada de defesa, que o considerou “parcial”.
Gianderson fez um depoimento repleto de "não sei", "não tenho certeza" e "tenho dúvida". Desagradou aos promotores de Justiça, que o chamaram para depor.
Gianderson disse que fez recarga de extintores na boate por dois ou três anos.
— Nossa função era avisar o cliente de que a carga dos extintores estava por vencer. Ela deve ser trocada em um ano, é o que determina a lei. Sempre que contatei os proprietários, eles fizeram as recargas — afirmou.
Já no período da tarde, o juiz aposentado e empresário da construção civil Pedrinho Bortoluzzi prestou depoimento como testemunha abonatória do réu Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira.
Bortoluzzi, indagado inicialmente pelo juiz Orlando, comentou que, entre 2011 e 2021, contratou Santos pelo período total de 53 meses para a realização de serviços de azulejista na construção de prédios.
—Sempre foi correto, uma pessoa calma, tranquila, excelente profissional e respeitador —descreveu Bortoluzzi.
Ele disse não ter conhecimento sobre detalhes do processo contra Santos, acusado como autor de 242 homicídios simples na tragédia da Kiss, junto dos outros três réus. O depoente contou apenas ter tomado ciência dos fatos pela imprensa. Por isso, ele atuou como testemunha abonatória, um expediente usado para que pessoas falem sobre a conduta do réu para além do episódio em julgamento.
— É uma pessoa que eu contrataria sempre. É um empregado que qualquer empregador gostaria de ter. É disciplinado, assíduo, preocupado com os demais colegas. Como pessoa, é um sujeito bom, bonachão, amigo de todo mundo — relatou Bortoluzzi.
Para finalizar o terceiro dia de júri, foi chamada outra testemunha arrolada pelo Ministério Público, o ex-funcionário da Kiss Érico Paulus Garcia. À época do sinistro, ele atuava como barman na casa. Contou com detalhes os fatos da madrugada do incêndio e comentou sobre a colocação da espuma no teto do palco, atribuindo a determinação da instalação ao proprietário Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko.
— Quem nos mandou colocar essa espuma foi o Kiko (Spohr). Determinado dia, chegamos à tarde e tinha o rolo de espuma para ser colocado — afirmou Garcia, à época barman da Kiss e, atualmente, policial militar.
Ele relatou que, inicialmente, ele e outros funcionários foram orientados a colar uma espuma “reutilizada”, que estava na boate em pedaços diferentes, retalhos.
— O Kiko disse que não ficou bom. Mandou tirar e disse que iria comprar uma nova. Colocamos de cima a baixo — comentou o depoente.
Ele descreveu que um duto de ar também recebeu o revestimento. O objetivo de Spohr com a iniciativa, detalhou o depoente, era tentar reforçar o isolamento acústico. Ao Ministério Público, que o arrolou como testemunha, Garcia disse que a espuma nova estava na boate um dia após a desistência de aproveitar a reutilizada.
A discussão sobre esse composto é considerada relevante no júri porque foi ele que pegou fogo ao ser alcançado pela fagulha do artefato pirotécnico.
Sobre o antigo empregador Spohr, o depoente afirmou que eles tinham boa relação.
— Ele (Spohr) sempre ajudou. Sempre que precisava de qualquer coisa, ele ajudava. Uma vez eu me apertei, ele me emprestou R$ 300. Ele me descontou em 10 vezes de R$ 30. Não tenho nada de ruim para falar dele — afirmou o policial militar.
O júri da Kiss será retomado para o quarto dia de trabalho neste sábado (4), a partir das 9h. Um acordo entre as partes permitiu a redução da quantidade de testemunhas e de sobreviventes a serem ouvidos de 33 para 29. O objetivo é dar mais celeridade ao andamento do julgamento.