O segundo dia do júri da boate Kiss, nesta quinta-feira (2), contou com o depoimento de uma testemunha-chave, o engenheiro civil Miguel Pedroso, responsável pela elaboração do projeto de isolamento acústico da casa de festa.
No início de 2012, depois de ter assinado um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público (MP) para conter a poluição sonora, a boate Kiss encerrava a execução de uma obra que tinha o objetivo de conter o ruído que incomodava os vizinhos em Santa Maria. Houve construção de paredes de alvenaria, mudança do palco de local e em estrutura de concreto e colocação de gesso acartonado no teto do salão de dança. Parte dessas estruturas contava com preenchimento de lã de vidro. Não havia, no memorial descritivo do projeto de engenharia, qualquer menção à instalação de espuma inflamável no teto do palco ou em qualquer outro espaço da Kiss.
— Só um leigo ou ignorante na área poderia achar que espuma seja conveniente dentro de uma boate — afirmou Pedroso, respondendo ao juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri.
Ele explicou que a espuma serve para diminuir o tempo de reverberação do som. Por isso, sua instalação faz sentido em um estúdio de música, por exemplo, para assegurar a qualidade do som. O depoimento de Pedroso, na condição de testemunha indicada pelo Ministério Público, era considerado relevante para discutir a responsabilidade pela colocação da espuma no teto do palco.
Foi esse componente que pegou fogo quando foi tocado pelas fagulhas do artefato pirotécnico erguido pelo vocalista e também réu Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira. A combustão expeliu fumaça tóxica, consumando a tragédia que matou 242 pessoas e feriu outras 636.
Pedroso disse que, no início de 2012, foi informado de que o MP desejava fazer uma visita na boate Kiss para fiscalizar a realização da obra. O objetivo era verificar se tudo havia sido executado conforme o TAC, assinado por Elissandro Spohr, réu e dono da Kiss, e o promotor de Justiça Ricardo Lozza.
— A equipe do promotor foi lá, tirou fotografia, fiscalizou, e estava tudo de acordo com o projeto. Não tinha nada fora do previsto. Não tinha espuma — disse Pedroso.
Pela manhã, nesta quinta-feira (2), prestaram depoimento os sobreviventes Jéssica Montardo Rosado e Emanuel Almeida Pastl. Jéssica presenciou o início do fogo e conseguiu escapar, embora tenha quebrado uma costela.
As maiores sequelas são emocionais: ela chora sem parar ao lembrar do irmão, o estudante de Educação Física Vinícius Montardo Rosado, que morreu após salvar várias pessoas, intoxicado pela fumaça que engolfava o ambiente da casa noturna. Jéssica, formada em Direito após a tragédia, passou mal ao testemunhar, teve de ser atendida por médicos, mas retomou o depoimento.
— Falam que ele salvou 14 pessoas. Ele pensou nos amigos que estavam lá dentro e voltou — descreve Jéssica.
A sobrevivente fez comentários a respeito dos réus. Ela recorda que Luciano Bonilha, produtor da banda Gurizada Fandangueira, encontrou o pai dela após a tragédia e chorou. Disse também que viu Spohr logo depois do começo do incêndio, tentando retornar à boate. E que o vocalista da banda, Santos, a viu momentos após o incêndio. Ele pediu que ela saísse de perto, contou. Jéssica ainda comentou desconhecer, à época do sinistro, que Hoffmann era sócio da Kiss.
O outro sobrevivente, Pastl, sofreu queimaduras e precisou ser entubado devido à falta de ar causada pela fumaça tóxica. Ele acabou casando com uma enfermeira que o atendeu e, hoje, o casal tem uma filha.
— Só tinha uma saída de emergência. Não entenderam o risco de fazer um show pirotécnico dentro de um local fechado. O material usado para isolamento acústico era inadequado e inflamável. Os extintores eu não vi – recordou Pastl.
“Quem me contratou foi o Kiko e o Mauro”, afirma DJ que trabalhava na Kiss
Último sobrevivente a prestar depoimento no júri da Kiss nesta quinta-feira (2), o DJ Lucas Cauduro Peranzoni, que estava na boate a trabalho na madrugada de 27 de janeiro de 2013, afirmou que foi contratado para prestar serviços pelos dois sócios da empresa, os réus Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann.
— Quem me contratou foi o Kiko e o Mauro. Tratei com ambos — afirmou Peranzoni.
Embora tenha citado a discussão profissional com Hoffmann, a vítima disse que “nunca viu” ele durante festas na boate.
A defesa de Hoffmann sustenta que ele era apenas investidor, e que não tomava decisões no cotidiano e na gestão da Kiss.
Peranzoni disse não ter ouvido nenhuma voz ao microfone avisar que um incêndio estava em curso. Emocionado, conta ter desmaiado e ter sido pisoteado. Ele relatou ter percebido o incêndio e disse que um colega de trabalho da boate veio ao seu encontro pedir um extintor que deveria estar no lugar. Antes que pudessem tentar localizar o equipamento, ele descreveu o que viu:
— Uma nuvem preta muito densa. Eu olhei para ele (colega) e disse: "Vamos sair daqui". Não tinha mais ninguém na pista nesse momento. Saímos por trás. Tinha uma área VIP atrás de mim. (...) Essa nuvem foi muito rápida.
Respondendo ao advogado Jader Marques, da defesa de Spohr, Peranzoni disse que a relação do empresário com os funcionários era “muito boa”.
— Era um local muito bom — afirmou o sobrevivente sobre a experiência profissional e o ambiente da boate.
O advogado Bruno Seligman de Menezes, da defesa de Hoffmann, trouxe para a discussão o depoimento de Peranzoni à Polícia Civil à época do inquérito. Conforme a manifestação do defensor do réu, o sobrevivente havia dito naquele momento que somente Spohr o havia contratado para trabalhar como freelancer no som da Kiss, sem citação ao nome de Hoffmann. A defesa de Hoffmann apresentou à reportagem o termo do depoimento de Peranzoni à Polícia Civil em que apontou apenas Spohr como contratante.
— Não lembro desse depoimento. O que lembro é de ter sido contratado pelos dois (Spohr e Hoffmann) — respondeu o DJ nesta quinta-feira, no júri.