No início de 2012, depois de ter assinado um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público (MP) para conter a poluição sonora, a boate Kiss encerrava a execução de uma obra que tinha o objetivo de conter o ruído que incomodava os vizinhos em Santa Maria. Houve construção de paredes de alvenaria, mudança do palco de local e em estrutura de concreto e colocação de gesso acartonado no teto do salão de dança, sendo que várias dessas estruturas contavam com preenchimento de lã de vidro.
Não havia, no memorial descritivo do projeto de engenharia, qualquer menção à instalação de espuma inflamável no teto do palco ou em qualquer outro espaço da Kiss.
— Só um leigo ou ignorante na área poderia achar que espuma seja conveniente dentro de uma boate — afirmou o engenheiro Miguel Ângelo Pedroso ao responder perguntas do juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri.
Ele explicou que a espuma tem utilidade para diminuir o tempo de reverberação do som. Por isso, sua instalação faz sentido em um estúdio de música, por exemplo, para assegurar a qualidade do som. O depoimento de Pedroso, na condição de testemunha indicada pelo Ministério Público, é considerado relevante para discutir a responsabilidade pela colocação da espuma no teto do palco.
Foi esse componente que pegou fogo quando foi tocado pelas fagulhas do artefato pirotécnico erguido pelo vocalista e também réu Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira. A combustão expeliu fumaça tóxica, o que foi decisivo, junto com o fogo, para a consumação da tragédia que matou 242 pessoas e feriu outras 636.
Pedroso disse que, no início de 2012, foi informado de que o Ministério Público desejava fazer uma visita na boate Kiss para fiscalizar a realização da obra. O objetivo era verificar se tudo havia sido executado conforme o TAC, assinado por Elissandro Spohr, dono da Kiss, e o promotor de Justiça Ricardo Lozza.
— A equipe do promotor foi lá, tirou fotografia, fiscalizou, e estava tudo de acordo com o aprovado no projeto. Não tinha absolutamente nada fora do previsto. Não tinha espuma — disse Pedroso.
Ele afirmou ter tomado conhecimento de que havia espuma no local no dia da tragédia, em 27 de janeiro de 2013, quando estava em Recife.
Questionado pelo juiz, ele comentou a característica dos materiais que projetou para a obra de isolamento acústico da Kiss.
— A lã de vidro não é combustível. A alvenaria de pedra, ainda existe lá (na boate) hoje. O gesso acartonado entra em combustão a partir de 700ºC. Precisa estar abaixo de uma temperatura dessa constante para realmente entrar em combustão — afirmou Pedroso.
Em trecho mais adiantado do depoimento, já respondendo a indagações do Ministério Público, comentou se a boate sofria risco de sinistro, consideradas as características do seu interior após a obra de isolamento acústico:
— Não tinha risco de incêndio. O que eu fiz não seria inflamável imediatamente. Não havia risco.
O engenheiro relatou que, semanas após a obra, recebeu uma ligação de Spohr. O dono da Kiss disse que ainda havia algumas reclamações de vazamento de ruídos para a vizinhança e pediu um laudo do engenheiro sobre esses barulhos. Pedroso contou que estava morando em Alegrete na época e que foi três vezes a Santa Maria, mas em nenhuma delas conseguiu encontrar Spohr. Dali para frente, se encerrou sua relação profissional com a Kiss.
— O que acompanhei pela imprensa foi que a espuma colocada na boate foi comprada numa colchoaria. Esse tipo de espuma é inflamável. (...) Eu só posso deduzir que foi feita uma obra posterior a minha — afirmou Pedroso, sobre o surgimento desse composto no interior da Kiss.
O engenheiro ainda explicou que existem espumas acústicas adequadas para tratamento acústico e que não são inflamáveis, porém, são mais caras:
— A espuma adequada é bem mais cara. Uma diferença razoável de preço.
Pedroso comentou, no depoimento, que viu Mauro Hoffmann, também réu e sócio de Spohr na Kiss, “uma ou duas vezes” na boate durante a execução das obras. A defesa de Hoffmann sustenta que ele era apenas investidor, sem participação na rotina de gestão e de tomada de decisões da boate.
O advogado Jader Marques, da defesa de Spohr, questionou se o engenheiro Pedroso, ao atuar na Kiss, não sentiu que havia perigo com a presença de barreiras metálicas e outros obstáculos na boate, o que acabou prejudicando a evacuação durante o sinistro.
— Eu não tinha nada que ver com o que existia dentro da boate. O meu problema era isolamento acústico. Eu fui contratado para fazer projeto de isolamento acústico — respondeu o profissional.
Marques, pelo segundo dia seguido, mostrou imagens de espumas em outros pontos da boate, como nos caixas, questionando o motivo de ninguém ter mandado retirar devido a riscos. Ele sustenta que, à época, não havia a percepção geral dos dias atuais sobre o perigo representado por esse composto em locais fechados.