Funcionário da Kiss à época da tragédia, Érico Paulus Garcia afirmou no júri, em depoimento nesta sexta-feira (3), que participou da colocação de espuma no palco da boate. Para a fixação, relatou, foi utilizada a cola de sapateiro de nome Cascola. Ele disse que a ordem para a colocação partiu de Elissandro Callegaro Spohr, sócio da Kiss que, naquele período, lidava com reclamações sobre ruídos que incomodavam a vizinhança em Santa Maria.
— Quem nos mandou colocar essa espuma foi o Kiko (Spohr). Determinado dia, chegamos à tarde e tinha o rolo de espuma para ser colocado — afirmou Garcia, à época barman da Kiss e, atualmente, policial militar.
Questionado pelo juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri, por cerca de uma hora, Garcia disse desconhecer se o composto adquirido era ou não inflamável.
Ele relatou que, inicialmente, ele e outros funcionários foram orientados a colar uma espuma “reutilizada”, que estava na boate em pedaços diferentes, retalhos.
— O Kiko disse que não ficou bom. Mandou tirar e disse que iria comprar uma nova. Colocamos de cima a baixo — comentou o depoente.
Ele descreveu que um duto de ar também recebeu o revestimento. O objetivo de Spohr com a iniciativa, detalhou o depoente, era tentar reforçar o isolamento acústico. Ao Ministério Público, que o arrolou como testemunha, Garcia disse que a espuma nova estava na boate um dia após a desistência de aproveitar a reutilizada.
A discussão sobre esse composto é considerada relevante no júri porque foi ele que pegou fogo ao ser alcançado pela fagulha do artefato pirotécnico erguido pelo réu Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira.
No segundo dia de depoimentos, na quinta-feira (2), o engenheiro Miguel Pedroso, responsável pelo projeto técnico de isolamento acústico da Kiss, afirmou que tanto o desenho quanto a execução da obra, idealizada para conter o ruído, não envolveram a instalação de espuma inflamável.
Sobre o sinistro, Garcia recordou que, no começo, o incêndio era visto em um pequeno foco. Houve tentativa de apagar com extintor, sem sucesso. Em dado momento, relatou, o fogo se expandiu de forma rápida, fazendo avançar uma nuvem negra pelo interior da boate. Ele comentou os instantes que precederam o início do fogo, quando Santos segurava o artefato pirotécnico.
— Ele (Santos) pulava e cantava com o braço esticado para cima — descreveu Garcia, salientando que o réu usava uma luva enquanto segurava o fogo.
Respondendo a diversos questionamentos do juiz, que tinha em mãos uma cópia do seu depoimento à Polícia Civil à época do inquérito, Garcia disse ter visto Spohr do lado de fora da Kiss.
— A primeira pessoa que vi lá fora foi o Kiko (Spohr). Ele estava muito apavorado e gritando porque a esposa estava grávida (e dentro da Kiss). Entrei para tentar ajudar, mas respirei mal e acabei saindo de novo (da boate) — explicou a testemunha.
Ele disse que, depois disso, não viu se Spohr voltou ao interior da boate para auxiliar sobreviventes. A esposa do sócio da boate sobreviveu.
Sobre o antigo empregador Spohr, o depoente afirmou que eles tinham boa relação.
— Ele (Spohr) sempre ajudou. Sempre que precisava de qualquer coisa, ele ajudava. Uma vez eu me apertei, ele me emprestou R$ 300. Ele me descontou em 10 vezes de R$ 30. Não tenho nada de ruim para falar dele — afirmou o policial militar.
Sobre o réu Mauro Hoffmann, também sócio da Kiss, a testemunha disse que, nos tempos em que era barman, ouviu Spohr dizer uma vez que, para tomar determinadas decisões, tinha de “consultar Mauro”. Apesar disso, afirmou que “o Mauro nunca me deu uma ordem direta”.
A defesa de Hoffmann sustenta que ele era apenas investidor e não participava da gestão da boate.
Depois de ter conseguido sair da Kiss, Garcia relatou ter voltado diversas vezes ao interior da boate para resgatar pessoas, em sua maioria já inconscientes. Contou que era necessário se arrastar pelo chão, o que permitia ficar menos exposto aos danos da fumaça tóxica. Crítico da atuação dos bombeiros militares que atenderam a ocorrência naquela madrugada, ele calcula ter retirado do interior da casa de festas entre 15 e 20 pessoas.
— Não me considero um herói. Só fiz o que achava que deveria ser feito — afirmou Garcia, em resposta ao promotor David Medina da Silva.
O policial ainda comentou sobre a hipótese de seguranças terem barrado a evacuação do público no início do sinistro, quando se pensou que uma briga estava em andamento:
— Inicialmente, sim, foi segurado, mas por cinco, seis, sete segundos, até que eles (seguranças) perceberam o que estava acontecendo e foi liberado.
Questionamentos das defesas
Garcia foi indagado pelas bancadas de defesa dos quatro réus. A advogada Tatiana Borsa, do acusado Santos, questionou se o sobrevivente conseguiu, de fato, enxergar o seu cliente pulando no palco com o artefato pirotécnico na mão.
A resposta foi de que não eram grandes saltos, mas que foi possível perceber o movimento de “subir e descer”. O depoente ainda disse desconhecer a informação trazida pela advogada de que o microfone de Santos havia sido supostamente desligado e, por isso, ele não teria conseguido avisar no sistema de som sobre o incêndio.
Aos defensores de Spohr, o sobrevivente disse que Kiko, como era conhecido o sócio da Kiss, era “excelente pessoa”. Negou qualquer referência de que ele pressionava os funcionários para atingir determinado volume de receita nas festas. Contou que, certa vez, Spohr emprestou o veículo para que ele pudesse visitar a filha. E afirmou ter tido a percepção de que Spohr fazia um “esforço” para tentar resolver o problema do vazamento de ruído para a vizinhança.
Por último, indagado pela defesa de Mauro Hoffmann, também sócio da Kiss, disse que jamais o viu “trabalhando em obra” da boate. Isso contrariou o depoimento do engenheiro Pedroso, que contou ter visto Hoffmann “uma ou duas vezes” no período das intervenções.
— Não vi o Mauro trabalhando em obra. Quando vi ele, estava sempre conversando com o Kiko e foram poucas vezes — detalhou Garcia, em depoimento que se estendeu por quase três horas.
Um acordo firmado entre as partes na tarde desta sexta-feira reduziu de 33 para 29 o número total de vítimas e testemunhas a se manifestarem no júri. O objetivo é dar mais celeridade ao julgamento.