Primeiros ouvidos no julgamento dos quatro réus do processo da boate Kiss, além de relembrarem os momentos do incêndio que matou 242 pessoas e feriu outras 636, sobreviventes vêm detalhando o drama de quem precisa enfrentar sequelas físicas e psicológicas. Quase nove anos após a tragédia em Santa Maria, famílias ainda dependem de suporte psicológico, em razão dos traumas, passam por reabilitação e recebem doação de medicamentos.
Com marcas de queimaduras nos braços e uma prótese (o pé direito precisou ser amputado porque a sandália que usava ficou presa no tornozelo), Kellen Giovana Leite Ferreira, 28 anos, fez um dos depoimentos marcantes do primeiro dia de julgamento. Segunda a ser ouvida, relatou que teve 18% do corpo queimado, ficou 78 dias internada, fez inúmeras cirurgias e enxertos de pele. Até hoje, convive com as sequelas daquela noite, na qual perdeu três dos sete amigos que a acompanhavam na festa.
— No calor, as minhas queimaduras ficam muito mais sensíveis. A amputação, a gente vive numa sociedade que exige o corpo perfeito. Comecei esse processo de aceitação do ano passado para cá. Tinha medo de sair na rua e as pessoas me julgarem por isso, pelo corpo perfeito. A partir do ano passado para cá, comecei a usar short. Eu usava calça jeans até no calorão de 40ºC. Correr, não consigo mais. A última vez que eu corri foi para tentar me salvar da morte — relatou no depoimento.
Kellen contou que, ao longo desse período, precisou ingressar na Justiça contra o Estado e prefeitura de Santa Maria para obter auxílio financeiro, em razão dos altos custos com prótese e tratamentos que precisa manter para auxiliar na saúde.
— Toda a vez que eu precisar de uma prótese, tenho que entrar na Justiça. Só isso aqui é R$ 3 mil. Esse encaixe é R$ 5 mil. Quando o componente é mais barato, eu mesma compro. Mas essa prótese é R$ 75 mil. De onde vou ter dinheiro para comprar? Eu saí para me divertir aquele dia, não para acontecer tudo isso — disse a jovem, que ainda realiza tratamento psiquiátrico, terapia com psicólogo e recebe medicação para as sequelas pulmonares em razão da fumaça tóxica inalada.
Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flávio Silva, que perdeu a filha Andrielle naquela noite em que ela comemorava o aniversário de 22 anos, acompanha de perto o drama de quem viveu a mesma dor que ele e que enfrenta as sequelas diárias. Nesta sexta-feira (3), Flávio inclusive precisou ser atendido por se sentir mal durante o júri.
Logo após a tragédia, dois serviços foram montados a partir da assinatura de um termo de compromisso entre Ministério da Saúde, Secretaria Estadual da Saúde e prefeitura de Santa Maria. Um deles é o Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes, o Ciava, no Hospital Universitário de Santa Maria, e o outro o Santa Maria Acolhe (veja detalhes abaixo).
No Ciava, médicos de diferentes especialidades realizam o atendimento no centro, que começou a tomar forma horas após o incêndio. A equipe foi formada com objetivo de fazer com que os sobreviventes possam voltar a ter vida normal, dentro do possível.
— São instituições que vêm desempenhando papel muito importante, com apoio tanto de familiares quanto de sobreviventes. O tipo de lesão que esses jovens tiveram nos pulmões ao inalar a fumaça tóxica, não tem tipo de exame que vai usar um, dois ou três anos. As pessoas continuam na dependência total de alguns medicamentos. Para minha filha, não tive a chance de ir atrás de um único comprimido. Temos que tratar esses jovens sobreviventes, com respeito e dignidade que eles têm direito. A gente vê em cada um deles e delas um pouco nossos filhos — afirma o presidente da AVTSM.
Em 2018, no entanto, o Ministério da Saúde optou por não renovar o acordo que havia sido firmado por cinco anos. Ainda assim, o Ciava seguiu funcionando dentro do Hospital Universitário (Husm) e se tornou referência nesse tipo de atendimento e na aplicação de novos métodos. O local oferece tanto o suporte psicológico, pneumológico, como terapias para recuperação de queimados (especialidade no qual se tornou referência).
Chefe da Unidade de Reabilitação do Husm, Iaçana Câmara Martins explica que atualmente há cerca de 40 sobreviventes da Kiss em atendimento na psiquiatria, além de 10 que têm consultas regulares na pneumologia. Há também casos de pacientes que fazem acompanhamento anual, num total de 200 atendidos, aproximadamente. Logo após o incêndio, esse número chegou a 609 sobreviventes em reabilitação.
Doação de medicamentos
Ao longo desses anos, outro dilema enfrentado, segundo a associação, foi a busca por medicamentos. No final de 2014, mães de vítimas e até os próprios sobreviventes passaram a buscar a ajuda, queixando-se de que não estavam mais conseguindo obter alguns remédios de uso contínuo por meio do SUS. A saída encontrada naquele momento foi tentar apoio na rede privada.
— Havia uma promessa da 4ª Coordenadoria (de Saúde) de que em dois ou três meses a situação seria regularizada. Até ontem não aconteceu. As pessoas estavam ficando sem tratamento. Tivemos a ideia de fazer ofícios e entregar em farmácias. Fizemos cerca de 60 ofícios, pedindo que o estabelecimento adotasse um ou mais sobreviventes, para conseguir algum desconto especial na compra de medicamentos. Tínhamos essa preocupação com os sobreviventes, que poderiam ter que interromper tratamento pela falta de condição financeira — recorda Flávio.
A resposta veio da rede de farmácias São João, que em 2015 passou a fazer a doação de medicamentos. Um cadastro inicial foi realizado com 42 pessoas, que necessitavam de medicações, especialmente para o trato pulmonar e antidepressivos.
— Desde lá, a rede vem dispensando esses medicamentos de forma totalmente gratuita. Temos que agradecer a rede por prestar essa solidariedade até hoje — afirma o presidente da associação.
Não apenas os sobreviventes necessitam desse suporte, mas também os familiares, que passaram a enfrentar problemas psicológicos após a perda dos entes.
— A medicação é cara. Muitos não têm como comprar. Alguns até compram, um que outro remédio. Mas geralmente eles (rede de farmácias) fornecem toda a medicação. São antidepressivos, remédios para ansiedade — explica Jacqueline Malezan, que perdeu o filho Augusto na tragédia.
Santa Maria Acolhe
Criado em 2013, o Santa Maria Acolhe, serviço mantido pela prefeitura de Santa Maria, por meio do SUS, conta com atendimento de psicólogo, psiquiatra, assistente social, enfermeiro e terapeuta ocupacional. No primeiro ano após a tragédia, cerca de mil pacientes foram atendidos. A demanda foi caindo ao longo do tempo, com a redução de novos atendimentos e o recebimento dos que estavam em tratamento. Atualmente, cerca de 40 pessoas relacionadas ao caso Kiss ainda frequentam consultas com psicólogos e psiquiatras, embora de maneira mais esporádica.
— Um serviço de atendimento psicossocial criado a partir de um acontecimento, um desastre, sempre tende a diminuir a demanda. Já se passaram nove anos, houve diminuição bastante expressiva. Isso é um processo natural — explica o psicanalista e coordenador do Santa Maria Acolhe, Volnei Dassoler.
Com a redução, o serviço acabou ampliado para receber outros casos que não envolviam o incêndio da Kiss, como atendimentos relacionados à prevenção de suicídio, por exemplo.
No fim deste ano, no entanto, a proximidade do julgamento levou pacientes a retornarem buscando atendimento. Familiares e sobreviventes ficaram apreensivos e ansiosos, tanto por terem que reviver a tragédia quanto com o resultado o júri.
O Santa Maria Acolhe também costuma estar sempre presente nas ações realizadas pela AVTSM. Em Porto Alegre, há um ambulatório montado dentro do Fórum, onde os profissionais estão dando suporte e apoio para quem está acompanhando o julgamento. É para lá que, muitas vezes, familiares e sobreviventes recorrem durante os intervalos ou momentos mais tensos do julgamento. No primeiro dia do júri, pelo menos duas pessoas precisam ser atendidas em razão de crises de ansiedade.
No segundo dia, uma das sobreviventes, Jéssica Montardo Rosado, 33 anos, também precisou ser atendida e medicada após passar mal. Durante o seu depoimento, relatou que ao longo de dois anos recebeu apoio psicológico. Ela estava na boate naquela noite e conseguiu escapar, mas perdeu o irmão durante o incêndio.
— A gente carrega uma culpa esses anos todos por ter saído da festa — confidenciou.
A frase de Jéssica não é isolada, já que o sentimento e o questionamento sobre o motivo de a tragédia ter acontecido são recorrentes entre sobreviventes de desastres coletivos, como o acontecido na Kiss, explica o coordenador do Santa Maria Acolhe. Da mesma forma, aqueles que mantêm sequelas, tanto respiratórias quanto marcas de queimaduras no corpo, também enfrentam um processo de entendimento de que a vida não será mais como antes.
— Embora aliviados por terem sobrevivido, se sentem mal porque não entendem porque uns sobreviveram e outros não. Essa é uma pergunta que surge junto com as demais que um desastre coloca. Por que comigo? Por que não fiquei em casa? Isso faz parte de um processo de elaboração que a pessoa precisa para entender o que houve com ela. Algumas perguntas ficam sem resposta. É uma questão clínica importante, que algumas perguntas elas não são respondidas, mas precisam ser escutadas e acolhidas — detalha o psicanalista.
Contrapontos
O que diz a Secretaria Estadual de Saúde
Procurada por GZH, informou que os medicamentos pactuados para atendimento dos pacientes da boate Kiss estão elencados na resolução CIB/RS 646/2013 (Comissão Intergestores Bipartite), utilizados em tratamento de complicações respiratórias tardias para os pacientes que não tiveram êxito em tratamentos prévios. O Estado informou que “nunca pactuou ou forneceu medicamentos para saúde mental” e que “todo atendimento em saúde mental é vinculado a acompanhamento em ambulatórios e serviços de saúde mental do município”.
O que diz a prefeitura de Santa Maria
O município de Santa Maria, por meio da Assistência Farmacêutica, informou que, atualmente, não há dispensação (entrega de medicamentos a pacientes) específica para sobreviventes da boate Kiss. Segundo a prefeitura, "caso algum paciente faça a solicitação e o medicamento conste na lista da Secretaria Estadual da Saúde ou na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (Remume), é feita a dispensação". Na campanha de vacinação contra a covid-19 em Santa Maria, sobreviventes com comorbidade tiveram prioridade na imunização, segundo a nota encaminhada.
O que diz o Ministério da Saúde
Procurado por GZH, o Ministério da Saúde se manifestou por meio de nota. Confira abaixo:
“O Ministério da Saúde informa que todos os serviços, acordados no Termo de Compromisso assinado pela Pasta, de atenção à saúde das vítimas, familiares e profissionais envolvidos no incêndio da boate Kiss foram realizados com sucesso. Como continuidade ao apoio às vítimas da tragédia, o ministério vai ampliar os serviços a Rede de Atenção Psicossocial, como Centro de Apoio Psicossocial, leitos de Saúde Mental, Equipe Multiprofissional, Serviço de Residência Terapêutica e Unidade de Acolhimento.”