Especialistas e representantes do poder público repetiram um mantra ao longo da apuração desta reportagem: a chuva que aconteceu nas últimas semanas no Rio Grande do Sul é um evento extremamente atípico. Aqui e na maior parte do mundo é raríssima a ocorrência de dois ciclones em sequência em uma mesma semana.
Os fenômenos que atingiram o Estado foram devastadores e completares entre si: primeiramente um explosivo, com vendavais e destelhamentos, seguido de outro com chuva intensa e constante a ponto de elevar e níveis poucas vezes vistos rios como o Taquari, das Antas, dos Sinos, Gravataí e também o Guaíba. Na região de Lajeado, por exemplo, o Taquari não subia tanto há 64 anos.
Isso faz da enchente uma exceção que não deve se repetir tão cedo? Não necessariamente. Um dos apontamentos é que as mudanças climáticas tendem a fazer com que o Estado lide com cada vez mais frequência com situações extremas alternadas – seja a chuva ou falta dela.
O objetivo desta reportagem é apontar como o Estado pode aprender a conviver com essa situação, de modo a impedir que desastres naturais se tornem tragédias humanas. Para isso, é preciso mais eficiência tanto na prevenção quanto na resposta às intempéries. A boa nova é que, além de boas lições de outros lugares, há farta tecnologia à disposição e diversas iniciativas já em curso.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Confira as soluções possíveis
Entender que o Rio Grande do Sul mudou
Especialistas divergem se o que o Rio Grande do Sul vem vivenciando nos últimos anos já é reflexo das mudanças climáticas. Porém, isso não quer dizer que as mudanças não estejam acontecendo e é um consenso que elas causarão a intensificação dos mesmos problemas.
Cada vez mais o Estado enfrenta períodos de estiagem longa e severa seguido de eventos curtos de chuva forte e volumosa. Não à toa, são os dois eventos que lideram com folga o ranking de ocorrências da Defesa Civil estadual: nos últimos 30 anos, foram 3.635 episódios de estiagem e 2.013 de enxurradas.
– Ora, se algo ocorre mais de 3.500 vezes em 30 anos, isso não é mais um episódio atípico. Isso passa a ser uma condição natural. Atípico foi estarmos há oito anos, antes desse, sem uma estiagem tão severa – avalia o coronel Rodrigo Dutra, subchefe da Defesa Civil do RS, relembrando das estiagens de 2004 e 2011.
A solução, portanto, passa por olhar com mais atenções para outros Estados acostumados a esses fenômenos, como Sul e Sudeste, no caso das enxurradas, e do Nordeste e Centro-Oeste, no caso da estiagem.
Um exemplo prosaico: nessa estiagem, a Defesa Civil decidiu usar recursos para enviar caminhões-pipa aos locais mais afetados, mas descobriu que não havia esse tipo de equipamento à disposição no Estado, mesmo com 80% dos municípios em emergência. A solução foi a compra de um viniliq, estrutura inflável adaptável à caçamba de veículos e caminhonetes.
Promover o encontro entre política e geografia
Para cidades situadas à beira dos rios, isso é uma obviedade: para saber a possibilidade de haver uma enchente, é preciso observar não só a precipitação local, mas também no curso anterior do rio. No caso da chuva de 8 de julho, impressionou a velocidade com que o problema em uma região afetou a outra.
– Tudo o que acontece no alto do Rio das Antas muito nos interessa, porque ele encontra o Carreiro e se torna o Taquari. Dessa vez, entre chover lá na região de Caxias do Sul e Lajeado estar debaixo d’água se passaram menos de 12 horas – conta André Jasper, professor do Programa de Pós Graduação em Ambiente e Desenvolvimento da Univates.
Problema é que nem sempre as prefeituras estão integradas. Seja em ações preventivas, seja em respostas rápidas aos eventos. Por isso são salutares iniciativas como a construção do dique de Alvorada, obra bilionária de 27 quilômetros em desenvolvimento pela Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan). Porém, em razão dos estudos de impacto ambiental e da burocracia, a iniciativa começou em 2013 e ainda não saiu da prancheta.
Para responder de forma integrada às enchentes, a divisão política já existe: nove coordenadorias regionais respondem à Defesa Civil gaúcha. Conforme o comandante da instituição, coronel Júlio César Rocha Lopes, o ganho em agilidade deve contar com a ajuda da tecnologia a partir de duas medidas já em andamento: a união física do setor com a Sala de Situação, da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, e a inauguração do Sistema Estadual de Gerenciamento de Riscos e Desastres, plataforma já em teste que permitirá o acompanhamento da situação climática do Estado em tempo real por meio de aplicativo.
Fazer as pazes entre as cidades e suas águas
Para tornar a relação entre as cidades com a chuva e os rios mais compreensível, o professor Arthur da Fontoura Tschiedel, professor da Unisinos e doutorando em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pela UFRGS, faz uma boa analogia:
– Solucionar o problema das enchentes não é como parar de fumar, que é encontrar uma forma de tirar algo ruim da tua vida. É mais como perder peso: você quer emagrecer, mas precisa aprender a conviver com a comida porque ela continuará fazendo parte do dia a dia.
Essa convivência harmônica torna-se ainda mais necessária em um Estado que, dos seus 40% de vegetação de floresta, hoje tem por volta de 7%. Em áreas impossíveis de reflorestar, a melhor forma é prever espaços em meio ao desenvolvimento urbano que ajudem a coletar e absorver a água.
É o que a China tenta fazer desde 2013, quando, após uma enchente que alagou mais de 200 cidades, investiu US$ 12 bilhões em projetos de cidades esponja. Trata-se de espaços públicos e adaptações em prédios já existentes – como tetos verdes e cisternas – para que 80% da cidade consiga absorver ou captar 70% da água da chuva.
Há experiências menos ambiciosas, mas também valiosas no Brasil, como os piscinões de São Paulo, o Lago Paranoá, em Brasília, e o Parque Barigui, em Curitiba. O parque curitibano, inaugurado em 1972, é particularmente interessante: quatro vezes maior do que a Redenção, é uma área de lazer que serve também para preservar mata nativa e propositalmente alagar em caso de enchentes, dando tempo às redes pluviais para dar conta da chuva. De quebra, retém água em uma mini hidrelétrica que abastece a iluminação do próprio parque.
Justiça seja feita, conceber estruturas públicas de lazer que sejam “alagáveis” já é algo que foi pensado na revitalização da Orla do Guaíba e, como vimos neste mês, funcionou.
Oferecer soluções melhores do que os problemas
A resposta mais decisiva na questão das inundações é também a mais complexa: as habitações quase sempre irregulares em áreas suscetíveis a alagamentos. E é complexa porque diferente dos demais problemas, cujas soluções passam por decisões políticas, investimento e tecnologia, a escolha de morar em uma área de risco passa pelo fator humano.
Ao comentar o caso dos habitantes das ilhas de Porto Alegre, por exemplo, diferentes fontes da Defesa Civil citam múltiplos exemplos de pessoas que se recusam a deixar suas casas mesmo em situações extremas para não ter a mobília furtada. Se mudar para outros locais, portanto, está fora de cogitação.
— A principal medida é não deixar uma área ser ocupada, porque, uma vez ocupada, é muito difícil de os moradores saírem. Ele sabe que vai ter problema morando ali, mas é um problema que ele sabe lidar. Na Ilha da Pintada, por exemplo, são gerações lidando com isso — avalia o gestor ambientar Lindomar Constante, que atuou oito anos na Defesa Civil de Porto Alegre e hoje é pós-graduando em Gestão de Risco e Desastres Ambientais na Faculdade Dom Bosco.
Ou seja: a solução para realocar populações em áreas de risco passa por programas de habitação sérios em que eles não troquem um problema conhecido por outros desconhecidos, como novas residências em locais distantes e sem estrutura.
Impossível, não é. Basta olhar para as centenas de famílias reassentadas para a construção da nova ponte do Guaíba, que deixaram a Ilha dos Marinheiros. Se a prevenção a desastres for encarada com a mesma seriedade com que uma obra viária, há chance de evolução.
Perceber que ciência é mais barato do que tijolos
Praticamente todos os especialistas ouvidos para esta reportagem dividem as medidas para conter enchentes entre as estruturais – resumindo, obras – e as não estruturais, que é o uso de inteligência, pessoal e tecnologia na prevenção e na defesa desses eventos. E todos enfatizam que o investimento em medidas não estruturais é imensamente mais barato e tem excelente custo benefício, por vezes dispensando as próprias obras.
Nesse campo, são notáveis os avanços científicos de décadas para cá. Hoje já é possível, por exemplo, monitorar a cota de um rio de 15 em 15 minutos por telemetria (tecnologia de transmissão de dados sem cabos), ter acesso a dados históricos e previsões meteorológicas muito mais precisas e estimar de forma muito rápida em softwares uma mancha de inundação a partir da quantidade de chuva e da vazão de um curso hídrico.
O que falta, diversas vezes, é consciência da importância desse investimento a alguns gestores envolvidos, como exemplifica Claudineia Brazil, coordenadora da Pós-Graduação em Gestão de Riscos e Desastres Naturais da faculdade Dom Bosco de Porto Alegre:
— No início da década, no Vale do Paranhana, eu estava na UFRGS e a universidade estava implementando um projeto de instalação de pluviômetros e réguas de níveis, tudo bancado por ela. Não andou porque as prefeituras não se dispuseram a investir no chip para a transmissão dos dados, cujo custo chega a ser ridículo comparado ao restante. E monitoramento das cheias é o mínimo. O ponto de partida para qualquer outra medida. Mas é aquela coisa: às vezes muda prefeito e talvez o próximo já não acha isso tão essencial.
Prevenir para não ter de remediar
Falando em rios, logo acima do Mampituba talvez esteja o melhor exemplo de um Estado que aprendeu que investimento em prevenção é caro, mas imensamente menos doloroso do que remediar uma tragédia. Conforme o chefe da Defesa Civil local, coronel João Batista Cordeiro Júnior, a enchente de 2008, que matou 135 pessoas e desabrigou 5,6 mil, foi o divisor de água para que o Estado reestruturasse todo o seu sistema de enfrentamento a desastres naturais.
Por lá, a Defesa Civil ganhou status de secretaria diretamente ligada ao gabinete do governador. Por meio dela, os municípios tiveram suas Defesas Civis locais equipadas e, em seguida, avaliadas e ranqueadas para fins de captar recursos de outras fontes de investimento, como o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE).
Com um mapeamento de risco de todos os municípios debaixo do braço, qualquer projeto municipal de expansão urbana passa pelo radar da secretaria, bem como os planos de contingência de cada cidade. Somente Blumenau tem cadastrados 60 abrigos pra receber a população atingida por adversidades.
Um exemplo de como a estruturação prévia é decisiva foi verificada há menos de duas semanas. Após a passagem do ciclone bomba, a Defesa Civil catarinense já contava com uma formatação de compra por registro de preços para emergências. Em poucos dias, conseguiu comprar e distribuir telhas a todos os municípios afetados.
Outro exemplo, agora de criatividade: o ferro da recém reformada ponte Hercílio Luz está sendo utilizado para substituir pontes de madeira em mais de 500 localidades. Em caso de chuva, as estruturas de ferro garantirão mais segurança por um tempo mínimo de 200 anos.