Todos os pertences de Hellen Militão dos Santos, 27 anos, preencheram pouco mais da metade de um caminhão-baú. Colchão, cama, mesa de jantar, geladeira, fogão e sofá ocupam menos espaço do que a expectativa que a jovem carrega ao deixar a Ilha Grande dos Marinheiros com os dois filhos, o irmão e um cachorro. A casa onde ela viveu por nove anos está no traçado da nova ponte do Guaíba, que está 82% concluída, e é uma das mais de mil residências e comércios que serão demolidos para a obra avançar. Daqui para a frente, é vida nova.
Pela primeira vez, Hellen será proprietária de um imóvel. Ela optou pela compra assistida _ quando a família escolhe o imóvel dentro de uma faixa de preço estabelecida e o Dnit compra a casa ou apartamento em nome do morador. Seguindo estes critérios, a dona de casa que faz crochê para vender optou por um apartamento de dois quartos no Bairro São Geraldo, onde viverá com os filhos Yúri, 12 anos, e Eduarda, um ano e um mês, o irmão Marlon, 25 anos, e a cachorrinha Havana.
Ritmo lento
A família de Hellen foi uma das 15 que já deixaram a Ilha desde meados de março. Na quarta-feira, o Diário Gaúcho acompanhou sua mudança da casa onde vivia com os pais e dois irmãos até novo lar, no bairro São Geraldo, na Zona Norte. Este, porém, é só o começo da lenta remoção dos moradores que vivem no traçado da ponte. 1.107 famílias na ilha e no continente (nas Vilas Tio Zeca e Areia) ainda precisam ser realocadas. Ao todo, foram adquiridas mais de 30 imóveis por compra assistida, mas o andamento do processo ainda é tímido. Embora a lenta realocação dos moradores contraste com o avanço da obra, o Dnit nega qualquer risco de interrupção dos trabalhos por demora no reassentamento das famílias.
Cadastro em 2014
Como outros moradores da Ilha, Hellen chegou a acreditar que a mudança não aconteceria. Fez o cadastro junto ao Dnit em 2014 e foi há pouco menos de um mês que recebeu as chaves da sua casa. Em cinco anos, a obra da nova ponte atrasou, praticamente parou e não deve ser concluída em 2019. Apenas em meados de março as primeiras remoções de famílias começaram efetivamente a ocorrer:
– Ninguém levou fé em sair daqui até ver a ponte em cima da gente – lembra.
Enchente, nunca mais
A família de Hellen mora há nove anos na ilha. Ela nasceu em Porto Alegre, mas ainda bebê se mudou para General Câmara, na Região Carbonífera, onde foi criada. O clã retornou à Capital em 2010 em busca de emprego e passou a morar na Ilha dos Marinheiros. A jovem construiu a vida em um casebre de madeira nos fundos da casa da mãe. O local foi completamente atingido por uma enchente em 2015 que deixou a ilha submersa na água. Sem poder reformar o local devido ao avanço da obra da ponte, Hellen mudou-se definitivamente para casa da mãe, onde viveu até quarta-feira.
– Só de pensar que nunca mais terei que me preocupar com a possibilidade da chuva invadir minha casa, já vale a pena. Perder tudo na enchente é muito difícil – relembra.
"Coração aperta"
No momento da mudança, enquanto a família dividia uma garrafa gelada de três litros de refrigerante para enfrentar o calor de 32° C, a mãe de Hellen, Iara, 52 anos, enxugava as lágrimas ao se dar conta de que a casa ficaria mais vazia com a saída de dois dos três filhos que viviam com ela. Sem contar a energia dos dois netos, que não terá mais por perto. Ela e o marido, Adão, 52 anos, se preparam para nos próximos dias retornarem a General Câmara, onde também adquiriram uma casa via compra assistida pelo Dnit.
– Eu sei que eles vão ficar bem, mas o coração aperta. Vamos ficar um pouco mais distantes a partir de agora.
Entre os projetos, ir na pracinha
Hellen não queria abrir mão de morar em uma casa, porém, o medo da insegurança a fez optar por um apartamento de dois quartos no bairro São Geraldo. Para ela, além de uma oportunidade de vida nova, ter um imóvel no nome é a chance de garantir uma herança para os filhos.
Ao abrir o portão do novo prédio no fim da tarde, ela, os dois filhos e o irmão chegaram confiantes ao novo lar – com exceção da cachorrinha Havana, que se negava a subir os degraus da escada. Precisou ser carregada por Marlon. O novo lar tem janelas grandes, paredes brancas e uma área em que Hellen já faz planos:
– Aqui quero fazer uma churrasqueira – comenta ela, animada.
Assim que tiver a casa nova organizada, a primeira coisa que Helen quer fazer é levar os dois filhos na pracinha a poucas quadras do novo endereço. Para Yúri e Eduarda, ir a uma pracinha será uma doce novidade. Na ilha, não tinha espaço de lazer para as crianças, que pouco iam para rua. Hellen não sentirá falta da impossibilidade de deixar os filhos soltos no pátio de casa. Segundo ela, o lixo acumulado nas ruas atraia ratos e insetos.
– Era um perigo para eles se machucarem ou ficarem doentes – lembra.
"Vou começar do zero aqui"
Marlon, que é professor de ioga e aluno do curso de Educação Física da Fadergs, era o mais animado com as perspectivas que a mudança lhe trará. À reportagem, enumerou algumas das vantagens da troca de endereço: parada de ônibus a 90 metros de casa, supermercado mais perto e, de uma forma geral, a chance de uma qualidade de vida melhor, num bairro com calçamento e mais estrutura:
– Estou feliz e ansioso para sair logo, tudo vai ficar mais fácil, gosto da ideia de morar mais próximo do Centro.
Hellen deve enfrentar desafios maiores que o irmão. Mãe solteira de dois filhos, faz artesanato em crochê e precisará encontrar uma vaga em uma escola infantil para Eduarda para então buscar um emprego fixo. Mesmo assim, se sente confiante:
– O que mais vou sentir falta é dos meus vizinhos, das amizades que a gente tinha lá, aquela companhia para tomar chimarrão. Quem faz o lugar são as pessoas. Sei que vou ter que começar do zero aqui.
A partir da mudança, a família terá acompanhamento ao longo de seis meses de assistentes sociais do Dnit.